“Eles querem te levar” ("Eles" VI)
Tinnitus Aurium era o nome
para o zumbido interminável que José tinha nos ouvidos. Descobriu isso quando
leu uma reportagem sobre um dos seus ídolos literários, que sofria do mesmo
problema. O escritor dizia, na entrevista, que se acostumou com o ruído
procurando se distrair com outros sons. Por isso escrevia seus romances ouvindo
música clássica.
Antes
dessa descoberta, José fora ao médico, que o aconselhara a se afastar ou pelo
menos diminuir a quantidade de café. “Caímos na asneira de dizer o que
ingerimos e aí dá nisso”, pensou ele. De nada adiantou. Ia procurar outros
especialistas. Depois do que o escritor disse, no entanto, desistiu da ideia.
Acontece
que o danado do ruído aumentava a cada dia. No escritório de um motel onde
trabalhava, lugar muito silencioso, o mal se tornava mais evidente.
Foi lá
que o zumbido deu lugar às vozes. Num primeiro momento, achava que fossem os
funcionários que circulavam pelo corredor, por isso chamava a atenção deles,
pois deveriam fazer silêncio para não incomodar os clientes. Eles alegavam que
estavam conversando em voz baixa, o suficiente para trocar informações sobre o
trabalho.
Mais
tarde, José se deu conta que as vozes poderiam vir dos quartos mesmo, sendo os
clientes os responsáveis pelo incômodo, pois o zum-zum-zum vinha acompanhado de
gemidos. Nesse caso, não havia nada a fazer, a não ser concluir seu trabalho,
esperar o final do expediente, ir para casa e ouvir uma boa música.
Naquele
fim de semana, porém, quando teria que substituir o gerente que havia saído de
férias, o problema se agravou. Fora verificar o movimento do estabelecimento no
sábado à noite. Dos quartos do motel lotado vinham vozes e gemidos que entravam
na sua mente de uma forma ensurdecedora. Avisou aos funcionários que iria para
casa e que deveriam lhe telefonar somente se houvesse alguma emergência para
resolver.
Em casa,
pôs nos toca-discos a Nona de Beethoven. Sentou-se e procurou relaxar ouvindo a
música. Quando chegou no último movimento, porém, a partir da entrada do coro,
as vozes começaram a se multiplicar dentro do ouvido. Desligou o aparelho, mas
elas permaneciam. Começaram a repetir a todo instante: “eles querem te pegar”,
“eles querem te levar”. Saiu para a rua e as vozes continuavam a repetir as
duas frases: “eles querem te pegar”, “eles querem te levar”. Correu pelas
calçadas da cidade silenciosa com as mãos sobre os ouvidos. Procurava a imponente
catedral de estilo gótico. Quem sabe lá encontraria a paz de que precisava.
Enquanto isso, as vozes repetiam: “eles querem te pegar”, “eles querem te
levar.” Parou na porta da igreja, mas ela estava fechada. Quando se voltou para
a praça que ficava em frente, lá estavam eles.
As vozes
cessaram. O ruído cessou. Não ouvia mais nada, nem mesmo a água jorrando no
chafariz da praça. Ele encontrou, finalmente, a paz que tanto esperava.
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