Diário crônico XXXIII – Letras derramadas
(Em
homenagem aos 70 anos de Chico Buarque, republico um texto meu que saiu na
coluna Traçando livros do jornal Gazeta do Sul, em 2010.)
“Estava à toa na
vida, o meu amor me chamou” para ler Leite
derramado, o romance de Chico Buarque (Companhia das Letras, 200 páginas).
Por ser o maior compositor do Brasil, parte da crítica o considera um
aventureiro na literatura, esquecendo que letra de música também pode ser
poesia. “Sou um artista brasileiro”,
diz o eu-lírico da música “Paratodos”. Os livros comprovam a versatilidade
desse artista.
“Como beber dessa
bebida amarga”
que é a literatura do Chico? Se nas músicas vemos um homem romântico ou
engajado, principalmente contra a ditadura, nos livros os temas são
psicológicos, o mergulho é mais profundo na mente confusa de seus personagens.
Desde Estorvo, seu primeiro romance,
o ponto de vista é quase sempre o do protagonista (exceção de Benjamim, narrado em 3ª pessoa) e o
leitor não sabe até que ponto pode confiar na sua personalidade conturbada.
“O que será que será” que podemos esperar
de um livro do Chico? Pois não espere nada “com
açúcar com afeto” ao ler Leite
derramado. “Tijolo com tijolo num
desenho mágico” ele vai desenvolvendo a história através do protagonista,
Eulálio d'Assumpção, ancião de 100 anos, cuja fala fragmentada nos revela boa
parte da história do Brasil dos tempos do Império, passando por todo o século
XX, ditadura, “num tempo, página infeliz
da nossa história”.
O
romance parece ser uma releitura da canção “O velho”. Diz a letra, escrita em
1968: “O velho sem conselhos, de joelhos,
de partida, carrega, com certeza, todo o peso de sua vida”. Em Leite derramado, Eulálio relembra fatos
pessoais desses seus 100 anos de vida para uma mulher que, devido aos delírios
provocados pelos medicamentos (aliás, há semelhanças com o romance Indignação, de Philip Roth), ora é sua
filha ou sua neta, ora a enfermeira do hospital ou então Matilde, sua amada que
morreu nos anos 30. Sim, as mulheres, não as de Atenas com “suas melenas”, mas as brasileiras, principalmente sua esposa,
mulata que gostava de dançar maxixe, são presença marcante nessa narrativa.
Pela fala de Eulálio vemos, também, a decadência de uma família tradicional
brasileira, que começa com um barão do império e termina num garoto, o qual
para o velho tudo indicava ter se tornado traficante.
“Ah, se
já perdemos a noção da hora” é a sensação que temos ao ler a narrativa,
daquelas que nos prendem e não conseguimos largar tão facilmente. “Joga pedra na Geni” quem nunca se
deixou levar pela mão de um competente escritor, que nos carrega até os
subterrâneos da alma de um personagem, na escuridão de seus pensamentos, até
que gritemos “luz, quero luz”.
“Meu caro amigo, me
perdoe, por favor”,
mas Chico Buarque é um grande escritor.
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