No Traçando Livros de hoje, "O caminho de Ida", de Ricardo Piglia
Minha coluna no jornal Gazeta do Sul trata hoje do mais recente romance do escritor argentino Ricardo Piglia.
Um tubarão branco no porão
Numa
passagem de O caminho de Ida, de Ricardo Piglia (Companhia das Letras, 248 páginas, tradução de Sérgio Molina),
há, no porão da austera casa de um professor universitário, num enorme aquário,
um tubarão branco nadando. Uma metáfora que poderia ilustrar a teoria do próprio
escritor argentino sobre o gênero conto, mas que vale também para seus
romances: “Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo
elíptico e fragmentário” (“Teses sobre o conto”, do livro de ensaios Formas breves) Há sempre algo escondido
no porão, há sempre algo escondido no nosso inconsciente, há sempre algo
escondido na sociedade, há sempre algo escondido nas relações humanas.
Durante os
anos 90, Emilio Renzi, alter-ego do escritor, protagonista ou coadjuvante de
outros livros, é convidado para ministrar aulas sobre o poeta inglês W. H.
Hudson, em uma universidade de Nova Jersey. Quem faz o convite é Ida Brown, professora
(“estrela do mundo acadêmico) com quem acaba tendo um relacionamento, mantido
em segredo por ambos. Ricardo Piglia, durante muito tempo, lecionou no ambiente
universitário norte-americano e retrata muito bem seus bastidores que
representam, de certa forma, toda a sociedade dos Estados Unidos. “Os campi são pacíficos e elegantes, foram
pensados para deixar de fora a experiência e as paixões, mas correm por debaixo
altas ondas de cólera subterrânea: a terrível violência dos homens educados.”
Um suposto
acidente tira a vida de Ida, tornando o escritor alvo de investigação por
agentes federais. Porém, por aparecer com a mão queimada, há suspeita de que
ela poderia ter sido vítima de uma série de atentados a professores
universitários e outros intelectuais. O suspeito, conhecido como “Recycler”, é
mais tarde capturado. Para surpresa de todos, trata-se de Thomas Munk,
matemático, um gênio que bem jovem assumiu o posto de professor na Universidade
de Havard, mas depois desistiu da carreira e se isolou numa cabana construída
por ele próprio no meio de um bosque.
O
personagem, diga-se, foi inspirado num terrorista que realmente existiu:
Theodore Kaczynski, o “Unabomber”. Durante quase 20 anos enviou bombas em
envelopes e pequenas caixas para acadêmicos, mas só foi descoberto depois de
mandar um manifesto para o jornal New York Times no qual seu irmão reconheceu
sua linguagem e o delatou. A palavra nos revela.
Não é
comprovada, entretanto, nenhuma relação do criminoso com o acidente sofrido por
Ida Brown. Renzi, porém, fica sabendo, por meio de um detetive, um elo entre
Munk e Ida no passado. Além disso, encontra no meio de papéis que ela havia
deixado com ele, um exemplar de O agente
secreto, de Joseph Conrad, sublinhado em várias partes. A palavra nos
revela. Buscando elucidar o que ainda está escondido em toda trama, o narrador
vai mais fundo e questiona: teria ela sido vítima ou parceira do terrorista?
É, portanto,
o tubarão branco nadando nos subterrâneos o desenho pintado por Piglia: um
caminho sem volta, só de ida, ou em círculos, que a sociedade americana vem
tomando, uma violência que explode em atos que surpreendem o mundo, vindos
muitas vezes de pessoas sem passado criminal, mas que não seguram sua revolta
com um mundo que não lhes agrada.
Há ainda
outros tubarões brancos escondidos no romance: convido o leitor a mergulhar
nesse aquário.
Cassionei
Niches Petry é professor, mestre em Letras. Autor de Arranhões e outras feridas (Editora
Multifoco) e Os óculos de Paula, que
será publicado brevemente. Escreve regularmente para o Mix e mantém um blog,
cassionei.blogspot.com. Sua
casa não tem porão para criar um tubarão branco. Ou tem e ele não sabe.
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