No Traçando Livros de hoje, Agustín Fernández Mallo
Na minha coluna de hoje no jornal Gazeta do Sul, caderno Mix.
Releitura de um reescritor
Costumo usar
pedaços de papel ou os coloridos post-its
para marcar as páginas onde sublinho ou faço anotações nos livros que leio.
Isso denota para mim se o livro é bom ou se pelo menos me arrancou uma porção
de reflexões durante a leitura. Se estou relendo, a quantidade de papéis dobra,
como aconteceu há pouco na releitura do “romance” Nocilla dream, do
escritor espanhol Agustín Fernández
Mallo.
Publicado por
estas bandas pela Companhia das Letras, com tradução de Joana Angélica d’Ávila
Melo, inaugura uma trilogia batizada com o nome do creme de chocolate popular
na Espanha, que corresponde à Nutella que temos por aqui. Dos outros dois
volumes, a Companhia das Letras publicou também o segundo, Nocilla experience, e acredito que deva estar preparando o
lançamento do terceiro, Nocilla Lab.
Coloquei a palavra
romance entre aspas porque, a bem da verdade, a obra não é um narrativa longa
que possa ser classificada como tal. Composta por fragmentos diversos e não
constituindo um enredo, apenas alguns elementos se repetem durante a história,
por exemplo, um álamo à beira de uma estrada americana coberto por pares de
tênis e sapatos. Alguns personagens passam pelo local e dão sua contribuição
jogando seus calçados sobre os galhos. É o que dá unidade ao texto. E é a
passagem de um personagem a outro, de um lugar a outro, de uma situação a
outra, em capítulos curtos, que compõe a história ou as histórias.
Há também citações
de outros autores que contribuem de certa forma para o entendimento da
narrativa, levando o romance a ser comparado, pelo menos devido ao estilo, a O jogo da amarelinha, do Julio Cortázar.
Por exemplo, um estudo de Daniel Arijon sobre os planos sequência do filme Os pássaros, do Hitchcock, na cena em
que as aves vão chegando aos poucos ao pátio da escola, no meu ponto de vista
explica a estrutura do romance Nocilla
dream. As cenas cortam ora para o plano geral, mostrando os pássaros
pousando nos brinquedos do playground,
ora para o plano mais próximo da personagem Mélanie Daniel. É o que faz
Fernández Mallo na sua ficção ao ampliar e depois diminuir o foco da narrativa,
partindo ora para a coletividade ora para os indivíduos. (Coincidentemente,
enquanto escrevo, um pássaro muito bonito, acho que um pica-pau, pousou sobre o
meu carro na frente de casa. Pelo menos foi somente um.)
Agustín Fernández
Mallo nasceu em La Coruña, na Espanha, em 1967 e é também físico. Em 2011, depois
de terminar o Projeto Nocilla, publicou El hacedor (de Borges), remake. Por ordem da viúva de Jorge Luis Borges, o romance teve
que ser retirada das livrarias, pois ela não reconheceu na obra uma homenagem
ao argentino, curiosamente um escritor que também reescrevia e reinventava
obras literárias em cima de outras, assim como seu protagonista no conto
“Pierre Menard, autor de Quixote”. Felizmente o romance, já considerado de
culto, pode ser encontrado em alguns cantos da internet.
Cassionei Niches
Petry é professor, mestre em Letras. Autor de Arranhões e outras feridas (Editora Multifoco) e Os óculos de Paula (Editora Autoral).
Escreve regularmente para o Mix e mantém um blog, cassionei.blogspot.com.
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