Sérgio Sant'Anna no Traçando Livros de hoje
Da literatura como arte
Sérgio Sant’Anna já deu as caras por aqui quando do lançamento de O livro de Praga. É um dos escritores prediletos do cardápio desta
traça. Consegue, como poucos, equilibrar a experimentação narrativa com
histórias bem contadas, aliar a arte mais sofisticada com temas populares. Os
19 contos (ou narrativas, como ele prefere chamar) de seu mais recente livro, O
homem-mulher (Companhia das Letras, 183 páginas), coroam a regularidade
de sua obra, sem altos e baixos como acontece com outros escritores que
surgiram, como ele, nas décadas de 60 e 70.
O livro inicia e
termina com a narrativa que dá título à obra. Na primeira parte, o conto é
curto, narrando o encontro do ator Fred Wilson (também chamado de Zezé) com uma
jovem durante o carnaval em Belém do Pará. Ele gosta de se vestir de mulher, apesar
de ser heterossexual (“se travestir não era veadagem, mas incorporar a mulher em sua
masculinidade”). Depois de fazerem sexo num cemitério, os dois se
despedem e nunca mais se reencontram. A parte 2 do conto encerra o livro,
reapresentando o mesmo episódio, com pequenas variações, dando continuidade em
mais páginas com as peripécias de um grupo de teatro experimental criado pelo crossdresser no Rio de Janeiro.
Esse erotismo em
diálogo com as artes é uma constante na obra. A dança de Pina Bausch que
encanta um torcedor de futebol, a estátua de Buda sendo seduzido por uma bela
jovem (que ilustra a capa do livro). Em “Lencinhos”, uma jovem borda lenços com
motivos eróticos. Em outro conto, “O rigor formal”, a esposa de um escritor famoso
faz sexo oral em um estudante de letras na biblioteca do marido e relata tudo
em um e-mail para ser enviado à imprensa cultural. Em “Madonna”, o ladrão de
quadros se sente seduzido pelos seios da pintura de Edward Munch: “Enfim, os
mistérios gozosos da parte superior de seu corpo oferecido a homens de
sensibilidade. Oferecido a mim.” A arte pictórica erótica está também presente
em “Este quadro”.
Em alguns contos,
Sant’Anna reflete sobre a arte do escritor. É também um constante em sua obra. “O conto maldito e o conto
benfazejo”, na verdade um pequeno ensaio, discute os temas de um conto. Deve
ser mais duro, violento, “dos crimes hediondos como a sevícia ou a morte de
mulheres e crianças, que preferíamos não escrever, como se o fazendo déssemos
realmente à luz o monstro e seus atos”? Ou mais terno, em que “todas as possíveis
desavenças seriam esquecidas, assim como toda a angústia”?
Sérgio Santa’Anna representa com maestria o conceito que tenho de
literatura. Antes de mais nada, literatura é a arte da palavra. É a elaboração
artística que tem como instrumentos as letras, palavras e frases que, dispostas
de certa forma, provocam um efeito estético no leitor. A história é um
complemento, importante sem dúvida. Sem esse trabalho, porém, torna-se apenas
um mero exercício de entretenimento. Fazer literatura não é apenas contar uma
boa história. Sérgio Sant’Anna sabe disso e pratica muito bem essa arte.
Cassionei Niches Petry é professor e escritor. Autor de Arranhões e outras feridas (Editora Multifoco) e Os óculos de Paula (Editora Autoral).
Escreve regularmente para o Mix e mantém um blog, cassionei.blogspot.com.
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