“Não ser o normal”
Você olha para os
outros e enxerga os mesmos rostos. Ouve suas vozes e elas são as mesmas. Homens,
mulheres, crianças. Passageiros do avião, taxistas, funcionários do hotel, ex-amante,
esposa, filho, amigos. Todos são iguais, inclusive o presidente George W. Bush
(o enredo se passa no ano de 2005) em uma foto na parede. Sua vida é monótona,
lenta. Também sempre igual. Você está triste. Mesmo assim você escreve livros e
profere palestras sobre vendas, dá dicas de como agradar ao consumidor, como,
enfim, se dar bem com o público. Você se tornou um best-seller, é o famoso Michael
Stone, seu rosto é reconhecido em todos os lugares. Você, no entanto, não
reconhece as pessoas, ex-amante, esposa, filho, amigos. Você não sabe lidar com
os outros, não os vê como seres únicos, especiais, apesar de ensinar a fazer
isso em seu livro.
Então você ouve uma
voz diferente, uma voz encantadora no corredor de um hotel de uma cidade onde
foi dar uma de suas tantas palestras. Você bate nas portas dos quartos à procura
da dona da voz e a encontra. Vê um rosto diferente dos demais, se apaixona por
ela, porém... Deixemos o “porém” de lado. Ela se chama Lisa, operadora de
telemarketing, está no mesmo hotel porque fora justamente vê-lo com uma colega
de trabalho. Lera seu livro, era sua admiradora. Vocês bebem, depois a convida
para conversarem no seu quarto. Ela se espanta, pensando que ele queria a
amiga, mais bonita e que sempre se dava bem com os homens. Diz que se considera
diferente dos demais, um pouco por causa de uma cicatriz de queimadura do lado
do rosto que esconde com o cabelo. Diz ser uma anomalia, palavra que lera no
seu livro e teve que buscar no dicionário o significado. Você então a batiza de
Anomalisa, trocadilho que a agrada.
“Anomalisa” é o
título desta história, uma animação em stop
motion com roteiro de Charles Kaufmann, autor também de “Adaptação” e
“Brilho eterno de uma noite sem lembranças”. A questão da identidade é um tema
presente em todas as suas obras e em “Anomalisa” não é diferente. Aqui os
personagens são vividos por bonecos de silicone quase perfeitos, não fossem
algumas sulcos no rosto sugerindo que usam máscaras. As máscaras, “personas” em
grego, escondem ou disfarçam nossa personalidade e as usamos muitas vezes para
agradar aos demais. É o que sugere o tipo de palestra que Stone faz. Devemos sorrir,
ou aparentar sorrir, mesmo que a conversa seja apenas por telefone. Esse é
segredo para o sucesso: ser personagem.
Um detalhe
importante. O hotel onde o protagonista está hospedado se chama “The Fregoli” e
é justamente Síndrome de Fregoli o nome que se dá para um transtorno psicológico
em que o indivíduo vê os outros todos iguais, na verdade considera que são
todos uma só pessoa que se disfarça para realizar um complô contra ele.
Uma das reflexões do
filme é que devemos saber lidar com a anormalidade, fugir do normal, das
convenções e tentar também enxergar no outro o diferente, aquilo que identifica
cada ser. Ver por baixo da máscara é entender que não somos massa, mas sim
indivíduos. Como diz a canção, “é melhor não ser o normal”.
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