Traçando Livros de hoje é sobre o samba
Traçando sambas
Aos mestres Jorjão e Alcemiro dos Santos
Vários sambas, não apenas livros,
deixaram traços na minha vida. Muitas letras retratam passagens marcantes,
momentos de prazer, dor, mas também felicidade, ou me fazem refletir sobre a
questão humana. Letra de música não é gênero literário (por isso discordo do
Prêmio Nobel concedido a Bob Dylan), mas a carga poética de muitas obras de
sambistas não é inferior a de muitos escritores. De qualquer forma, é arte de
primeira e foi trilha sonora de muitas de minhas leituras, bem como me inspirou
a criar alguns contos, por isso me sinto na obrigação de render homenagem ao centenário
do samba.
Há 100 anos, foi realizada a primeira
gravação de um samba: “Pelo telefone”, de Donga. O ritmo, que mistura diversos
elementos da cultura negra com os de outras culturas, notabiliza-se pela
qualidade de seus letristas, grande parte oriunda de morros e bairros pobres e
sem estudos formais. Nelson Cavaquinho, por exemplo, empunhando seu violão nos
bares da vida, rascunhava versos como os de “A flor e o espinho”, junto com
Guilherme de Brito, (“Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a
minha dor”) ou os de “Notícia”, que inspiraram um conto meu chamado “Arranhões”:
“Guardei até
onde eu pude guardar o cigarro deixado em meu quarto é a marca que fumas confesse a verdade não deves
negar.” Neste
mesmo conto, cito também os versos de outro gênio, numa cena em que a
protagonista ouve um LP do Cartola, mais precisamente a faixa “Meu mundo é um
moinho”, que está arranhada: “Vai
reduzir, as ilusões a pó-a pó-a pó-a pó...”
Em outro conto que escrevi, “Aprendizado”, os versos “As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender”, de
“Coisas do mundo, minha nega”, samba de Paulinho da Viola, serviram como
epígrafe. Já em “Feliz
aniversário”, usei como epígrafe os versos “E o meu medo maior é o espelho se
quebrar”, do samba “Espelho”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro.
Pois esta música e sua continuação, “Além do espelho”, têm versos que
me emocionaram demais no último mês, depois da morte do meu pai em um acidente
de trânsito. Tratam justamente da relação do filho com a figura paterna, filho
que depois também se torna pai. Em “Espelho”, há a perda ("Num dia de tristeza me faltou o velho/ Que falta lhe
confesso que ainda hoje faz"), e na segunda canção, o filho, agora pai,
pensa na sua responsabilidade ("Quando eu olho o meu olho ali no espelho/ Tem
alguém que me olha e não sou eu/ Vive dentro do meu olho vermelho/ É o olhar de
meu pai que já morreu/ O meu olho parece um aparelho/ De quem sempre me olhou e protegeu/ Assim como meu olho
dá conselho/ Quando eu olho no olhar de um filho meu”).
Se
fôssemos reunir as melhores letras de samba em um livro, lá estariam, além dos
já citados, os versos magistrais de Silas de Oliveira e Joaquim Lirindo em “Meu
drama (Senhora tentação)”: Será, que o amor por ironia/ Deu-me esta fantasia/
Vestida de obsessão”; a singela “Prova de carinho”, de Adoniran Barbosa e Hervê
Cordovil: “Com a corda Mi, do meu cavaquinho/Fiz uma aliança pra ela, prova de
carinho”; a sofrida “Nervos de aço”, de Lupicínio Rodrigues: “Há pessoas com
nervos de aço/ sem sangue nas veias e sem coração”; “Sonho meu”, de Ivone Lara
e Délcio Carvalho: “No meu céu a estrela guia se perdeu/ A madrugada fria só me
traz melancolia”; e tantos, tantos outros versos que não serão citados devido
ao espaço.
Em outra
cultura, talvez, esses sambistas seriam grandes romancistas, contistas, poetas.
Quis o destino que nascessem aqui. Neste caso, para nós, como diria o sambista
Wilson das Neves, “ô, sorte!”
Cassionei Niches Petry é escritor e professor.
Publicou Arranhões e outras feridas e Os óculos de Paula. Já arriscou algumas letras de samba, ainda
inéditas. Seu blog: cassionei.blogspot.com.
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