Sobre mais duas novelas de Lúcio Cardoso
“Não se lê Lúcio
impunemente”, afirma André Seffrin no prefácio à edição conjunta das novelas Mãos vazias e O desconhecido. Lúcio Cardoso é um escritor da angústia, de
personagens angustiados e de leitores que se angustiam. Saímos de seus livros
nos sentindo condenados por vivermos felizes em mundo em que a miséria humana
está sempre presente ou a nossa porta ou dentro mesmo dos nossos lares.
Mãos vazias
foi publicada em 1938. Inicia com a espera de uma morte que acaba acontecendo
logo nas primeiras páginas e é dolorida por se tratar da morte de uma criança. Luisinho,
seis anos de idade, é filho de Ida e Felipe. Ela, até os últimos momentos de
vida do menino está ao seu lado, numa dedicação extrema. O pai, por sua vez,
apenas demonstra certa tristeza e desespero pelo que acontece. Quando a criança
enfim se vai (e escrevo estas linhas num Dia de Finados) devido à tuberculose,
Ida demonstra mais tranquilidade, frieza até, tanto que acaba fazendo sexo com
o médico do filho logo depois de seu enterro. (Na adaptação cinematográfica da
obra, o diretor Luiz Carlos Lacerda realiza a cena na mesma cama onde está,
coberto por um lençol, o corpo do menino.) Já Felipe entra em mais desespero ainda,
porém, parece, talvez apenas para demonstrar aos outros, principalmente aos
vizinhos, seus sentimentos.
É o estopim para que
Ida passe a externar seu desprezo pelo marido e deseja se libertar, saindo de
casa, não sem antes revelar para o marido que dormiu com o médico. O marido não
acredita em princípio, o que a deixa mais indignada com ele, sua falta de
atitude, seu conformismo, sua mediocridade. “Queria-o mais ríspido, imaginava proezas que o pobre Felipe
nunca chegaria a realizar. Nem sequer seria capaz de compreender o seu
pensamento, quando chegasse a descobrir os estranhos desejos que a perturbavam.”
É contra o conformismo que a protagonista mais se revolta, como nesse
diálogo com sua melhor amiga: “- Ana, é possível que você viva conformada com a
sua existência? (...) - Tenho marido. De que mais preciso?”
O desconhecido,
de 1940, relata a história de um forasteiro que chega a uma fazenda procurando
trabalho. “Batizado” pela proprietária de José Roberto (não ficamos sabendo do
seu nome verdadeiro), mesmo nome de um falecido capataz da propriedade, é um
estranho numa terra estranha, parafraseando o título de um romance de ficção
científica. Pois esse “alien” desestabiliza ainda mais o lugar. A dona, a velha
Aurélia, é dominadora e explora seus empregados, inclusive sexualmente. Expulsa
a filha da empregada Elisa por ciúmes de sua beleza (“Essa menina é uma negação
da minha própria existência.”) e ainda impede a mãe de vê-la. O cocheiro Miguel
deixa os cachorros com fome para dominá-los e sente inveja do desconhecido, que
pode lhe roubar os privilégios que tem com a velha. Já outro empregado, Paulo, namora
às escondidas com a filha de Elisa que está morando em uma igreja próxima e
deseja fugir com ela. José Roberto divide com ele a mesma cabana, o ensina a
ler e parece ter uma atração homoerótica pelo discípulo, que parece sentir o
mesmo, e tudo isso os deixa muito angustiados: “Nesse instante, ambos estavam
tão próximos que um sentia no rosto a respiração do outro. E sem saber por que,
ambos compreenderam que já não havia entre eles nenhuma hostilidade e que, ao
contrário, alguma coisa poderosa como o instinto os tinha unido, como se,
colhidos pela engrenagem de um fato misterioso e inesperado, devessem lutar
juntos para se libertarem.” A condição
sexual do protagonista, ao que parece, é a provável justificativa para ter
saído de sua casa para buscar trabalho longe da cidade.
Vale ressaltar que o
próprio Lúcio Cardoso vivia essas angústias enquanto escrevia a novela,
conforme relatou em seu diário pessoal: “Os sentimentos que então me agitavam,
a paixão desnorteada, a falta de caminho – ah, coisas da idade! – enquanto
escrevia uma novela (O desconhecido)
onde tentei lançar, encoberto, um pouco de tudo o que então me perturbava... e
não era aquilo uma simples manifestação de vida, infrene e cega, do meu sangue,
tumultuado e forte, manifestando por todos os modos sua vontade de existir e de
criar?” Difícil aqui separar autor e personagem. E o leitor, de certa maneira,
sofre junto com eles.
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