Um toque
Chuva, café, música clássica e leitura. Daqui a pouco, o
cachimbo. Combinação quase perfeita para uma manhã de dezembro, já de férias, final
de ano, final de um péssimo ano. Os dedos escorrem pelas teclas com aquela necessidade
de escrever algo. Não quero, porém, fazer nenhum balanço de final de ano como
costumava fazer. As coisas ruins suplantaram as boas, peso maior para a morte
trágica do meu pai, cujo rosto pude tocar pela última vez há pouco mais de dois
meses.
Os dedos continuam tateando o teclado. Há pouco estava lendo
o romance O inverno e depois, de Luiz
Antonio de Assis Brasil, editado pela L&PM. O protagonista, Julius, é um
violoncelista, que tateia as cordas buscando o som perfeito, que toca no seu
instrumento entre as pernas (o violoncelo, que fique claro) como se tocasse as
curvas do corpo de uma mulher, que toca os cobertores que o protegem do frio do
pampa, que toca o corpo das mulheres (Klarika, Constanza) como se tocasse seu cello.
O toque é a preliminar do prazer. Coloco a mão sob os pingos
da chuva antes de me atirar embaixo da água que cai do céu e me lembrar da
infância. Toco a xícara de café e sinto o calor antes de tocar o líquido
precioso com os lábios. Passo a mão sobre a capa do disco, retiro-o do plástico
e limpo com um algodão sua superfície antes de rodar uma sonata de Beethoven. Sinto
a textura da folha e seu cheiro antes de mergulhar numa história. Seguro o
cachimbo, pego com os dedos o fumo e preparo a pipa para uma boa cachimbada. Toco
suavemente o corpo da esposa antes de... vocês sabem.
Um dos trechos mais tocantes da literatura universal rende
um tributo ao toque. É o primeiro parágrafo do capítulo 7 de Rayuela (O jogo da amarelinha), de Julio
Cortázar: “Toco
tu boca, con un dedo toco el borde de tu boca, voy dibujándola como si saliera
de mi mano, como si por primera vez tu boca se entreabriera, y me basta cerrar
los ojos para deshacerlo todo y recomenzar, hago nacer cada vez la boca que
deseo, la boca que mi mano elige y te dibuja en la cara, una boca elegida entre
todas, con soberana libertad elegida por mí para dibujarla con mi mano en tu
cara, y que por un azar que no busco comprender coincide exactamente con tu
boca que sonríe por debajo de la que mi mano te dibuja.”
Basta um toque para algo desencadear. Sem ele, nada
acontece. Cito uma música popular nos anos 80, de Michael Sullivan e Paulo
Massadas, interpretada pela Rosana, em cujos versos o eu lírico aguarda apenas o
toque da pessoa pela qual sente uma atração também correspondida. Ambos, no
entanto, não têm coragem de se aproximar: “No barzinho da esquina, quase a
gente se esbarra/ Nem um toque, tudo vai ficando assim”.
Toco a xícara e ela agora está fria. É necessário aquecê-la
com café. Deixo de tocar os teclados e encerro por aqui. Toco o mouse para publicar esta crônica esperando
que outros façam a mesmo para apreciá-la.
Comentários