Meu texto na Gazeta do Sul de hoje
Dançando com o tempo no matadouro
Um
romance de guerra? De ficção científica? Psicológico? Realista?
Satírico? Autobiografia? Não dá para classificar um romance como Matadouro 5, de
Kurt Vonnegut, publicado em 1969. Há de tudo um pouco na narrativa do
escritor, que é daqueles autores que ficam na fronteira (que não deveria
existir) entre a literatura de ficção científica e a chamada literatura
mainstream, assim como Philip K. Dick e Ray Bradbury.
Já no subtítulo, Cruzada das crianças, uma dança com a morte,
há uma pista de que o romance é um libelo contra a guerra. A referência
ao episódio em que crianças foram convocadas para lutar na época das
Cruzadas, mas que acabaram sendo vendidas como escravas, acontece na
própria fala do narrador. Os combatentes americanos na 2ª Guerra Mundial
não passavam de crianças jogadas ingenuamente a uma luta que os
levariam inevitavelmente a dançar com a morte. O protagonista da
história, Billy Pilgrim, é um deles.
O
jovem se alista para lutar na guerra e acaba prisioneiro em um
matadouro na cidade de Dresden, na Alemanha. Acontece que o soldado tem
um problema: está solto no tempo, ou seja, viaja no espaço temporal sem
nenhum controle. Assim como ele está em um determinado momento na
guerra, pode estar no instante seguinte com sua esposa e filhos,
trabalhando como optometrista, ou então no planeta de Tralfamador,
depois de ser abduzido, vivendo uma espécie de Big Brother em uma redoma
de vidro com uma atriz pornô muito famosa, para delírio dos
alienígenas. Portanto, sabe tudo sobre o seu futuro, inclusive a data de
sua morte. Estão nesses pontos os toques de ficção científica, apesar
de não ficar bem claro se a viagem é psicológica ou material.
No
campo da realidade, a guerra é presença marcante. O protagonista (assim
como aconteceu com o escritor na vida real), está em Dresden no dia do
fatídico bombardeio, um dos fatos mais polêmicos do conflito, em que
morreram por volta de 130 mil pessoas, mais do que na bomba de
Hiroshima. “Coisas da vida”, como diz a filosofia tralfamadoriana, frase
repetida durante muitas vezes, sempre que há referências à morte. O
livro foi uma catarse para o escritor, sendo que na abertura seu alter ego,
Yon Yonson, faz uma viagem de volta à cidade alemã. É este o narrador
da história, que faz reflexões sobre a guerra, inclusive sobre a Guerra
do Vietnã, conflito no qual o filho de Pilgrim se alista.
A narrativa fluente é composta por fragmentos curtos, num tom de comédia e sem ordem cronológica, pois acompanha o vai e vem temporal do protagonista. Vale destacar também a participação do fictício escritor Kilgoure Trout, personagem presente em outras obras de Vonnegut, que escreve livros de ficção científica. Os argumentos de seus livros são uma atração à parte na narrativa.
O romance (que ganhou uma adaptação
para o cinema em 1972) foi editado recentemente no formato pocket pela
editora L&PM, com tradução de Cássia Zanon. Uma ótima oportunidade
para o leitor conhecer um clássico do século XX.
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