Pandora e Eva no Traçando Livros de hoje


Minha coluna de hoje no jornal Gazeta do Sul, caderno Mix (errinho do uso de crase corrigido aqui)

Entre caixas e maçãs



Cassionei N. Petry



A editora L&PM acaba de lançar, na coleção pocket, As melhores histórias da mitologia, em dois volumes, com mitos compilados por Carmen Seganfredo e A.S. Franchini. Numa linguagem leve e coloquial, é uma aventura deliciosa pelo mundo dos deuses e heróis da mitologia greco-romana.

Uma das histórias tem uma relação muito curiosa com outra bem conhecida pelos cristãos, provocando na traça que vos escreve um exercício de imaginação bobo, só possível em época de férias mesmo. Em “A Caixa de Pandora”, temos o mito da primeira mulher criada por Zeus para servir, vejam só, de castigo para os homens, pois Prometeu roubara o fogo do Olimpo. O deus mais poderoso do panteão grego a presenteou com uma caixa, porém, com a ordem de não abri-la. Logicamente, como toda mulher é muito curiosa, Pandora não respeitou a proibição. Como consequência, de dentro do recipiente saíram todos os males lá guardados. Ou seja, quem é a culpada pelas coisas ruins do mundo? A mulher. Mas isto, diga-se, é o mito que diz.

A outra história é conhecidíssima, pois figura em um dos livros mais lidos da humanidade, a Bíblia Sagrada (cuja melhor edição é a da Paulus), mais precisamente no Gênesis. Na história, Deus criou Adão e, para que ele não ficasse sozinho, fez, a partir da costela dele, uma mulher, a qual foi chamada de Eva. Aos dois foi ordenado pelo criador que não comessem o fruto da árvore do conhecimento, uma maçã. Pois a mulher, provocada por uma cobra falante, desobedeceu e comeu o fruto. Como se não bastasse, ofereceu a Adão, que, como todo o homem obediente à mulher, também comeu. Visto que era um alimento desconhecido para eles, Adão acabou engolindo o caroço que ficou trancado na garganta, resultando no chamado Pomo de Adão. O resultado disso tudo: o pecado entra no mundo. Mais uma vez, a mulher é considerada a culpada.

Mais curiosa ainda é a relação que se pode fazer entre a caixa e a maçã. Se lermos alguns textos de Machado de Assis, veremos que ele emprega seguidamente a palavra “boceta”. Segundo o dicionário, o termo significa uma caixinha oval, utilizada para guardar rapé. Vejamos um trecho de um conto machadiano: "Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira..." (“O Empréstimo”).

O vocábulo acabou, talvez pela analogia com o seu formato, sendo sinônimo do órgão sexual feminino no Brasil. Em Portugal ela é ainda utilizada no sentido original, tanto que o mito grego da primeira mulher lá é chamado de “Boceta de Pandora”. Inclusive é a tradução para o título do filme alemão Die Büchse der Pandora, de 1929, dirigido por Georg Wilhelm Pabst. Em inglês, Pandora’s Box. Bem, se pensarmos que ela abriu a caixa...

Quanto ao mito bíblico, não há menção no Gênesis de que o fruto fosse uma maçã. Mas porque essa fruta acabou ganhando a fama, aparecendo em várias pinturas que retratam a história? Bem, imaginemos uma maçã cortada ao meio. Ela lembra justamente o órgão sexual da mulher. E se Eva deu a maçã para Adão comer...

Para que não exista mais o mal no mundo, portanto, a solução é que as mulheres deixem as caixas fechadas e não ofereçam maçãs a nenhum homem.

Cassionei Niches Petry é mestrando em Letras pela Unisc, com bolsa do CNPq. Gosta de maçãs bem doces e de ambrosia, alimento dos deuses do Olimpo. Escreve o Traçando Livros quinzenalmente para o Mix e mantém o blog cassionei.blogspot.com.

Comentários

Fabiano Felten disse…
Oi, Cassionei. Internet estabelecida aqui em casa, posso comentar novamente em seu blog. Falando em casa, desde dezembro sou teu conterrâneo, imagino que quase vizinho, e estou no aguardo de uma suntuosa, bela e merecida festa de boas-vindas (!).

No mais, esta leitura e esta versão do mito de Pandora me parecem reducionistas. Há outras narrativas acerca da mítica desse "presente de grego" dos deuses. Vou resumir a de Hesíodo, que talvez tenha sido a primeira a ser escrita no Ocidente.

De acordo com uma leitura que podemos fazer a partir dos versos do aedo da Beócia, "caixa de Pandora" deveria ser, na verdade, "caixa de Pandora e de Epimeteu". A caixa é um presente dos deuses aos recém-casados (a ambos). Um ardil, melhor dizendo, não um presente. A caixa faz parte do castigo de Zeus à humanidade em resposta à ousadia de Prometeu. O titã fora castigado com os suplícios do Cáucaso. A humanidade, que participara do ato, seria castigada com a perda de todos os benefícios divinos (agora conheceria definitivamente a doença, o frio, a tristeza, a intriga, a violência, a guerra, etc.).

Zeus, conhecedor perspicaz do coração do homem, solicitou a Hefesto que forjasse uma mulher escultural, e assim foi feito, do barro (um golem). Nela todos os deuses depositaram dons, bem como desejos obscuros (Hermes, por exemplo, depositou nela curiosidade e malícia, uma combinação perigosa). Assim produziram uma mulher (não a mulher, porque mulheres já existiam) cujos bons dotes eram visíveis mas os maus não podiam ser percebidos. O ato lembra o presente dado aos troianos: não podemos ver o que está dentro.

Pois bem. O rancor que Zeus tinha sentido para com Prometeu era muito grande. Escolheu, então, o irmão do titã, Epimeteu, "aquele que conhece depois", como alvo, sabedor de sua parca inteligência e de sua sempre inconsequente precipitação (repare que Epimeteu já possui todos os malefícios ocultados em Pandora). A coisa toda saiu melhor que a encomenda, porque o pobre homem desejava casar-se. Zeus, então, fez com que Epimeteu conhecesse Pandora (o golem travestido). Assim, metade do castigo era concretizado. Ora, os deuses não podiam castigar explicitamente a humanidade, porque correriam o risco de não serem mais cultuados - o que era inadmissível. O restante do castigo precisava ser, então, muito sutil. Forjaram um presente matrimonial - a tal caixa - e deram ao casal, advertindo: "Não abram". Presente de grego? Pior: presente dos deuses gregos.

"Não abram a caixa" despertou em Pandora um desejo incontrolável de ver o que ela continha. Na noite de núpcias, com Epimeteu dormindo, Pandora, furtiva, ingênua e curiosa, abriu-a (e sobre ela, então, recaiu a responsabilidade, livrando os deuses de qualquer acusação). Era assim concluído o desejo de Zeus de definir as fronteiras entre mortais e imortais.

Há mais um detalhe que convém apontar. Antes de tudo isso acontecer, Prometeu, "o que sabe antes", disse a seu irmão que jamais aceitasse alguma coisa que viesse dos deuses, porque isso lhe causaria a ruína. Esse "alguma coisa" não era Pandora, mas a caixa. Epimeteu, contudo, que só se dava conta depois, ao invés de recusar o presente, aceitou-o.

Pandora, portanto, é tão responsável quanto Epimeteu, ou seja, tanto o homem quanto a mulher têm responsabilidade pela abertura da caixa. Logo, é um ato androgínico (que é, em essência, os dois). Para os helênicos primitivos, as mulheres (o feminino) eram sagradas. A união entre o feminino e o masculino era mais sagrada ainda. É justamente nesse ponto, tão sagrado, que Zeus desferirá o golpe derradeiro. Depois disso homens e mulheres não passarão de homens e mulheres, e os deuses serão para sempre os únicos "venturosos sempre vivos", como canta Hesíodo.

Pior que mulheres abrindo bocetas, são homens que só pensam depois nas consequências. Os dois tem que ser responsabilizados.

Enfim, a comparação com a história bíblica tá ótima, Cassionei.

Grande abraço,
Fabiano.
Cassionei Petry disse…
O especialista em mitologia és tu, não tenho nem o que discutir. Posso transformar em post tua aula-comentário?
Realmente estamos morando próximos agora, passei por perto estes dias e olhei para as sacadas procurando encontrá-los. Estavam "entocados" lendo, certamente.
Vamos marcar algo, um chimarrão, uma janta, enfim.
Abraço.
Fabiano Felten disse…
Oi, Cassionei. Fique à vontade para postar.

Você sabe então o endereço aqui? Beleza. Vamos tomar um chimarrão e combinar uma janta. Vou te passar por e-mail nosso telefone (fixo e celular). É só dar um toque que a chaleira já vai para o fogo.

E parabéns pelo teu texto. Tá muito divertido e oportuno.

Abraço,
Fabiano.
Cassionei Petry disse…
Se é o mesmo residencial onde vocês disseram que iriam morar...
Anónimo disse…
sim Cassionei! Te esperamos para um chimarrão - e um café! Venha logo! É só dar um toque para abrirmos o portão (o interfone não funciona).
Abraço, Ana
Wagner Bezerra disse…
Hahahaha muito bom! ;D

Mulher é mesmo um pecado! ^^

Abraço!;D
Cassionei Petry disse…
Abraço e obrigado pela leitura.

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