A boa mentira em "F for fake", de Orson Welles
Em A
marca da maldade, de 1957, o policial Quinlan, vivido por Orson Welles
(1915-1985), que também dirige o filme, forja provas para prender ladrões e
assassinos. Segundo o personagem, eles eram realmente culpados. Falsificar para
representar o real. Com essa premissa, pode-se comparar Quinlan com um documentarista
que forja fatos para mostrar uma realidade que ele quer transmitir? Sim,
responderia Welles, pois “é tudo verdade”, conforme o título de seu primeiro documentário,
gravado no Brasil, que pode representar uma grande ironia do autor, já que suas
armas de documentarista são apresentadas em seu último filme lançado em vida: F for
fake, de 1973, que na versão brasileira recebeu o nome Verdades
e mentiras.
“Nossas
fantasias e nossos desejos são estruturados como roteiros”, escreveu o cineasta
Jean-Lous Comolli. Esse poderia ser o lema de Orson Welles. Sua trajetória no
cinema é a comprovação disso, mas bem antes, com seus trabalhos para o teatro e
para o rádio, o diretor já trazia suas inquietações e, principalmente, suas
tentativas de enganar o espectador. Mostrar a ficção como verdade, ou esconder
a verdade por meio da ficção, eis os desejos que Welles estruturou como roteiro
durante toda a vida.
“Tudo em Orson Welles passava pela mentira”,
afirmou o crítico de cinema Inácio Araújo. Para ele, a ruptura com o
tradicional a partir dos anos 40, “isso o que se convencionou chamar modernidade em cinema, passa toda por
aí: o falso o verdadeiro, o real e o irreal”. Welles é um dos protagonistas
dessa ruptura.
O falso está presente na sua obra desde a
histórica transmissão radiofônica de de um drama teatral. Em 1938, Welles
dirigia um programa semanal na rádio CBS, em que eram adaptados grandes clássicos
da literatura. Uma das obras escolhidas foi o romance de ficção científica A guerra dos mundos, de H. G. Wells, que
narra a invasão de marcianos em diversos lugares do mundo. Num tom de
noticiário, a história foi ao ar no dia 30 de outubro daquele ano, causando pânico
em boa parte da população dos EUA. Muitos ouvintes fugiram de suas casas e
alguns chegaram a cometer suicídio, imaginando que tudo fosse real. Horas
antes, Welles havia passado “a noite a remanejar a adaptação a fim de lhe
infundir um caráter de autenticidade, situando a situação em diferentes partes
dos Estados Unidos”, conforme André Bazin. Essa aparente realidade construída e
que depois é transmitida pelas ondas do rádio prova a genialidade do autor, já
que conseguiu convencer milhares de pessoas de que tudo estava de fato
acontecendo. André Bazin, no entanto, alerta: “embora o acontecimento tenha
deixado vestígios objetivos e seja tema de verdadeiros estudos científicos,
hoje é difícil acreditar em sua realização e, sobretudo, em sua amplitude. Esse
extraordinário fenômeno de esquizofrenia coletiva na escala de uma nação
parece-nos exageradamente inflado pela publicidade ou pela lenda wellesiana.”
Portanto, ainda jovem, Orson Welles provou
que podia falsificar e convencer de que tudo era real.
Seu primeiro filme – e primeira obra-prima –,
Cidadão Kane, de 1941, foi uma
criação ficcional, mas baseada na história verídica de um magnata da
comunicação. Há cenas que aproximam o filme de um documentário. Segundo Eduardo
Escorel, o diretor “não se acanhou em encenar cinejornais, supostamente
documentais, para servirem de propósito de sua narrativa ficcional”. O início
do filme corresponde justamente a vários minutos de notícias que são
transmitidas no cinema, dando conta da vida de Charles Foster Kane.
Mais tarde, começou a realizar no Brasil as
gravações de cenas de It’s all true, um
dos tantos projetos do diretor que sofreu com as imposições do mercado e das
discordâncias de Welles com os produtores. O filme permaneceu inédito até 1993,
quando outros três diretores reuniram o material gravado para realizar um documentário.
Verdades e
mentiras, por sua vez, foi seu último filme plenamente realizado.
Vendido como um documentário, na verdade é um metadocumentário, pois aborda
justamente a maneira como se realiza esse gênero. Ou melhor, não se pode
exatamente dizer que o filme é do gênero documental, uma vez que, como frisa
Fernão Pessoa Ramos, Orson Welles engana “de forma explícita (o narrador
menciona claramente o fato) o espectador em uma narrativa em que asserções
falsas e verídicas se sobrepõe.”
Welles faz o espectador desconfiar do que vê
na tela. O que se vê é um simulacro do que poderia ser real. O cineasta é um
manipulador, que distrai quem assiste enquanto esconde os seus truques.
As cenas iniciais do filme são reveladoras
nesse sentido, mostrando o próprio Welles no papel de um mágico, realizando uma
apresentação para duas crianças, fazendo com que uma chave desapareça e depois
apareça no bolso da criança. Seríamos nós espectadores comparados a esses seres
inocentes que pouco sabem sobre o que estão vendo? Estaria Welles nos dando a
chave para a interpretação do seu filme? “Ah, uma chave então. Ótimo Sr., levante-a sobre sua cabeça... E atente
para qualquer sinal de truques da minha parte. Contemple, diante de seus
olhos... uma transformação.” Welles nos dá a pista de que haverá vários truques
durante o documentário ou que o documentário é um truque. “Sou um charlatão”,
ele diz. Depois, afirma que o espectador será apresentado a “um filme sobre artimanha e fraude... sobre mentiras”.
O tema
revela o que há por trás do filme. A história de um dos maiores falsificadores
de quadros, Elmir de Hory, que enganou durante anos compradores de arte de todo
mundo, é dividida com a aparição de outros falsificadores. Clifford Irving, por
exemplo, que teria escrito uma biografia de um magnata, Howard Hughes, na verdade falsa, e o próprio
Welles, quando afirma que a história contada no documentário sobre Picasso e
seu envolvimento com uma mulher – interpretada por Kodar, esposa do diretor na
época – é falsa. “Será que os últimos vinte minutos de mentiras, em Verdades e mentiras, fazem com que o
documentário deixe de ser um documentário? Mas... e se tivéssemos uma situação
inversa? vinte minutos de verdade e 78 de mentiras? E será que as verdades, no
prazo que a narrativa se dá para contar verdades, são realmente verdades? Os
quadros falsos são realmente os falsos? Não estaria Elmyr queimando na lareira
um verdadeiro Picasso?”, escreve Fernão Pessoa Ramos.
Estamos diante da grande questão do que é
falso ou verdadeiro. A arte eleva a potencialidade da falsidade, afirmação
corroborada pela frase de Picasso, citada no filme: “A arte é uma mentira. Uma
mentira que nos faz ver a verdade.”
Ramos discute esse filme justamente para
falar sobre as fronteiras do gênero documentário: “Constatamos, ainda uma vez, a
fragilidade dos conceitos de verdade,
realidade, objetividade para lidar com o campo do documentário. Verdades e mentiras é simplesmente um
documentário por sua forma de enunciação características dos documentários,
embora estabeleça asserções ambíguas (algumas verdadeiras, outras falsas) sobre
a vida de Elmy de Hory e sobre a fragilidade da dimensão autoral, (sua
relatividade) nas artes pictóricas e em outras artes.”
Pauline Kael, uma das maiores críticas de
cinema dos Estados Unidos, afirmou que Orson Welles teria sido um farsante, ao
se apropriar do roteiro de Cidadão Kane, sendo que o texto era de Herman J. Mankiewicz.
Para Inácio Araújo, no entanto, Welles não era um farsante. “Era, sim, alguém
que tomava a farsa como questão e a arte como uma espécie de farsa.”
Como dissemos antes, Welles realizou seus
desejos através de seus filmes. Fez de sua vida a sua própria obra. Ao
estabelecer o falso como um dos seus temas, nada mais fez do que dizer que sua
vida tinha muito de falso, de mentira, de ilusão. Transpor isso para a tela de
cinema é transpor-se a si mesmo, e ele o fez tanto encarnando personagens
quanto espelhando suas fantasias na tela grande. E o cinema nada mais é do que
mostrar a ilusão na tela e, num documentário, vemos a ilusão de que aquilo se
vê é real.
Para Truffaut, “Verdades e mentiras mostra que um chefe montador deve ser um chefe
mentiroso.” Welles é um mentiroso, mas é muito bom assistir às suas mentiras na
tela.
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