No Traçando Livros de hoje, Lydia Davis
Minha coluna no jornal Gazeta do Sul, caderno Mix, é sobre aforismos e contos: http://www.gaz.com.br/gazetadosul/noticia/417708-cacos_que_perturbam/edicao:2013-07-31.html
Cacos que perturbam
Cassionei
Niches Petry
Dizer muito em poucas palavras, eis o
desafio de quem se propõe a escrever aforismos. O termo designa, segundo o
dicionário Houaiss, um “texto
curto e sucinto, fundamento de um estilo fragmentário e assistemático na
escrita filosófica, geralmente relacionado a uma reflexão de natureza prática
ou moral”.
Para
fugir dessa acepção moralista, os escritores criaram outros nomes para o
gênero. Carlos Edmundo de Ory, poeta espanhol, elenca alguns: “Nietzsche os chama:
sentenças e dardos / Novalis os
chama: pólen / Baudelaire os
chama: foguetes / Joubert: pensamentos,
Cioran: pensamentos estrangulados,
e Andréi Siniaski: pensamentos
repentinos / Rozanov: folhas caídas
y René Char: folhas de Hypnos /
Malcolm de Chazal: sentido-plástico,
e Louis Scutenaire: inscrições
/ Antonio Porchia os chama: vozes,
e eu aerolitos”.
Emil Cioram,
em Do inconveniente de haver nascido,
afirma: “O aforismo? Fogo sem chama. Entende-se que ninguém
queira se esquentar nele.” Para Humberto
Gessinger, um dos principias letristas do rock nacional e líder da banda
Engenheiros do Hawaii, “aforismos são o band-aid do
pensamento: só servem para cortes superficiais.”
O crítico literário, tradutor e romancista Marcelo Backes propõe o termo estilhaços,
com o qual intitula um de seus livros, editado pela Record. “O aforismo é anti-sistemático, de ascendência
espontânea e fundado num arremate sentencioso”. O subtítulo da mesma obra
também traz outras possíveis denominações: minigâncias, digressões e batocaços.
Em seu primeiro livro lançado no Brasil, Tipos
de perturbação (Companhia das Letras, 252 páginas, tradução Branca
Vianna), a norte-americana Lydia Davis aposta em ficções curtas, que beiram o
aforismo, ao lado de contos mais longos, mas ainda assim curtos. Mescla
epigramas (o aforismo em verso) com ensaios, além de arremedos de estudos
científicos, trechos de diários pessoais e fragmentos que descrevem cenas da
vida doméstica, como a difícil escolha de empregadas para a casa de uma escritora,
não por acaso chamada sra. D., que poderia ser a própria Davis realizando uma
autocrítica: “A sra. D. escreve contos, alguns bons, outros nem tanto.”
Franz Kafka, que foi um grande aforista, é um
personagem de uma das poucas narrativas menos curtas. Ele se angustia por não
saber o que fazer no jantar para o qual convidou Milena, sua namorada. “Não fui ainda capaz de enfrentar a ideia, só
consegui revoar em torno dela, como uma mosca em torno da luz, queimando a
cabeça.”
Moscas, diga-se, são presença constante em vários momentos do livro,
como no aforismo (ou microconto, como queiram) “Colaboração com a mosca”: “Eu
pus a palavra na página, mas ela acrescentou o
acento.” A edição americana da obra traz na capa este inseto, que também
estampa outro livro perturbador, O homem despedaçado, do gaúcho Gustavo Melo Czekster, editado pela Dublinense. Há bicho que mais incomoda nossa dia a dia quanto
a mosca? E há outra arte que mais nos perturba do que a literatura?
Davis traz experimentos de linguagem nas suas ficções (apesar de ter
afirmado em uma entrevista que não gosta do rótulo de escritora experimental),
ficando longe de contar boas histórias. Isso é perturbador e, por isso mesmo,
me atrai como forma artística. Não é por acaso que esses cacos, que formam um interessante
mosaico literário, vêm dando certo, pois a escritora já obteve importantes
prêmios, como o National Book Award de 2007.
Cassionei
Niches Petry é professor, mestre em Letras e escritor. Publicou Arranhões e outras feridas (Editora
Multifoco). Escreve regularmente para o Mix e mantém um blog,
cassionei.blogspot.com, onde publica aforismos
e contos.
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