Cacos ("Eles" V)
Carlos via seu rosto
no espelho quebrado do banheiro. Os cacos representavam sua condição: pedaços
de um homem que já não era mais o mesmo. O espelho, que nunca foi trocado, já
refletira vários rostos dele. A cada dia era outro. O soco desferido naquele
objeto que o encarava todos os dias tornou sua imagem mais fiel.
Alguns cacos caíram na
pia. Vários Carlos apareceram. Eles debochavam de sua cara, riam dele.
Juntou-os e os jogou no lixo. Depois lavou sua mão ferida.
Sobre o sofá do
pequeno apartamento onde morava, esperando para ser lido, O homem despedaçado, do Gustavo Melo Czekster. Comprou-o por causa
do título, lógico. O conto, como gênero literário, retrata pedaços de nossas
vidas. Pegou o livro e o jogou de encontro à parede. Caiu no chão perto de
outro volume, Estilhaços, do Marcelo
Backes. Aforismos que lhe cortaram muito mais do que o soco no espelho.
Ouviu vozes bem
baixas, quase sussurros, mas que pareciam vir de dentro do apartamento. Depois
um barulho de algo batendo no chão. Era a lixeira. Da entrada da cozinha, ficou
olhando para aquele objeto que tinha como função recolher os pedaços do que
sobrava de sua vida, aquilo que não tinha mais nenhum valor, aquilo que sujava,
que fedia, embolorava, rasgava. “Diga-me que lixo produz, que te direi quem
és”.
A lixeira ficou
balançando, balançando, e os gritos que vinham lá de dentro foram ficando mais
altos, mais altos, até que ela tombou e se abriu. Os cacos, com os pequenos
Carlos, saltitavam pela cozinha indo em direção à sala. Apavorado, ficou
estático, enquanto eles se aproximavam e lhe apontavam, rindo, todos eles, numa
sincronia de gestos. Quando se preparavam para pular sobre ele, Carlos correu
para a janela. Cacos de vidro voaram e caíram sobre o seu corpo na calçada.
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