“Se existe senso de realidade, tem de haver senso de possibilidade”
Uma das coisas mais espetaculares da
literatura: o capítulo 4 de O homem sem
qualidades, de Robert Musil:
Se existe
senso de realidade, tem de haver senso de possibilidade
Quem deseja passar bem por portas abertas
deve prestar atenção ao fato de elas terem molduras firmes: esse princípio,
segundo o qual o velho professor sempre vivera, é simplesmente uma exigência do
senso de realidade. Mas se existe senso de realidade, e ninguém duvida que ele
tenha justificada existência, tem de haver também algo que se pode chamar senso
de possibilidade.
Quem o possui não diz, por exemplo: aqui
aconteceu, vai acontecer, tem de acontecer isto ou aquilo; mas inventa: aqui
poderia, deveria ou teria de acontecer isto ou aquilo; e se explicarmos que uma
coisa é como é, ele pensa: bem, provavelmente também poderia ser de outro modo.
Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensar
tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais
importante do que aquilo que não é. Vê-se que as conseqüências dessa tendência
criativa podem ser notáveis, e lamentavelmente não raro fazem parecer falso
aquilo que as pessoas admiram, e parecer permitido o que proíbem, ou ainda
fazem as duas coisas parecerem indiferentes. Essas pessoas com senso de
possibilidade vivem, como se diz, numa teia mais sutil, feita de nevoeiro,
fantasia, devaneio e condicionais; crianças com essa tendência são educadas
para se libertarem dela, e lhes dizemos que tais pessoas são utopistas,
sonhadores, fracos, e presunçosos ou críticos mesquinhos.
Quando os queremos elogiar, também chamamos
esses loucos de idealistas, mas obviamente tudo isso apenas se relaciona aos
espécimes frágeis, que não podem entender a realidade, ou talvez fujam dela;
portanto, pessoas nas quais o senso de realidade é uma falha. Mas o possível
não abrange apenas os sonhos de pessoas de nervos fracos, e sim os desígnios
divinos ainda desconhecidos. Uma experiência possível, ou uma verdade possível,
não são iguais à experiência real e verdade real menos o valor da realidade; ao
contrário, ao menos do ponto de vista de seus seguidores, têm em si algo
divino, um fogo, um vôo, um desejo de construção e uma utopia consciente, que
não teme a realidade mas a trata como missão e invenção. Afinal, a Terra não é
velha, e aparentemente nunca foi muito abençoada. Se quisermos distinguir entre
si as pessoas com senso de realidade e senso de possibilidade, basta pensar em
determinada quantia de dinheiro. Tudo o que mil marcos contêm em possibilidades
está ali contido, sem dúvida, não importa se possuímos os mil marcos ou não; o
fato de o Sr. Eu ou o Sr. Você os possuírem acrescenta tão pouco aos mil marcos
quanto acrescentaria a uma rosa ou uma mulher. Mas um louco os enfiará na meia,
dizem as pessoas realistas, e um empreendedor há de realizar alguma coisa com
eles; até a beleza de uma mulher sofrerá indubitavelmente acréscimo ou perda
segundo quem a possua. É a realidade que traz as possibilidades, e nada mais
errado do que negar isso. Mesmo assim, no total ou na média serão sempre as
mesmas possibilidades repetidas, até chegar uma pessoa para a qual uma coisa
real não signifique mais do que o imaginado. Será ela quem dará sentido e
destinação às novas possibilidades, que há de provocar.
Mas um homem desses não é um caso muito
claro. Já que, na medida em que não forem devaneios ociosos, suas idéias são apenas
realidades ainda não nascidas, naturalmente também ele tem senso de realidade;
mas é um senso para a realidade possível, e chega ao seu objetivo muito mais
devagar do que o senso para possibilidades reais, que a maioria das pessoas
possui. Ele deseja a floresta toda, o outro quer as árvores; e floresta é algo
difícil de expressar, enquanto árvores significam tantos e tantos metros
cúbicos de determinada qualidade. Ou talvez se exprima isso melhor de outro
modo, e o homem com senso comum de realidade se assemelha a um peixe que
abocanha o anzol sem ver a linha, enquanto o homem com aquele senso de
realidade, que também se pode chamar senso de possibilidade, puxa uma linha
pela água e não tem idéia se existe uma isca presa nela. Uma extraordinária indiferença
em relação à vida que morde a isca traz consigo o perigo de fazer coisas
totalmente aleatórias. Um homem sem senso prático – ele não apenas parece
assim, mas é assim – é inconfiável e imprevisível no trato com as pessoas.
Cometerá atos que lhe significam outra coisa do que para os demais, mas tudo o
deixa tranqüilo, desde que possa ser sintetizado numa idéia extraordinária.
Além disso, ele hoje ainda está muito longe de ser conseqüente. É bem possível
que um crime que prejudique a outros lhe pareça apenas um erro social, cuja
culpa não cabe ao criminoso mas à ordem social. Mas é de duvidar que, recebendo
uma bofetada, ele a considere insulto da sociedade, ou tão impessoal quanto lhe
pareceria a mordida de um cão; provavelmente, primeiro ele devolverá a
bofetada, depois pensará que não devia ter feito isso. E por fim, se lhe
roubarem uma amada, ele hoje ainda não conseguirá ignorar inteiramente a
realidade desse fato e consolar-se dessa perda com uma emoção nova e
surpreendente. Essa evolução ainda está em curso, e para o indivíduo representa
ao mesmo tempo fraqueza e força.
E como a posse de qualidades pressupõe certa
alegria por serem reais, podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso
de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem
sem qualidades.
Comentários