Diário crônico XXVI – Tudo gravado nas minhas fitas K7
A
leitura da crônica “O homem de mudança”, do livro A última madrugada, de J. P. Cuenca, me fez lembrar que ainda tenho
uma séria decisão a tomar: jogo ou não jogo fora minhas caixas repletas de
fitas cassetes? Já descartei uma porção de papelada quando consegui trazer
minha biblioteca para a nova casa há uns dois anos, mas as minhas fitas, mesmo quase
não as ouvindo mais – pois hoje tenho tudo em formato MP3 –, não sei ainda se
vão para o lixo.
Cuenca
se viu em situação parecida quando teve que se mudar. Aliás, todos que vivem
esse ritual ou fazem reforma em algum ambiente da residência se veem retratados
no texto. O cronista pergunta: “Se jogar suas lembranças fora, o que sobrará? O
que somos além desse acúmulo de passado e esquecimento?”
Pergunto
isso a mim mesmo, porém, apenas quando a esposa pede para eu jogar minhas fitas
fora. Na verdade, não quero me desfazer delas. Nas minhas fitas está gravado o
que eu fui nos anos 90. Há de tudo ali: house, pop, rap, samba, MPB, rock
progressivo, erudito. Ouvia rádio da moda, dancei passinho marcado nas boates,
arrisquei ser MC e dançava break, virei ritmista no carnaval e dirigente de
escola de samba, fui arrebatado pela poesia da nossa canção, me encantei com as
narrativas musicais repletas de referências filosóficas e literárias do Rush e
do Pink Floyd até refinar mais um pouco o gosto e me dedicar aos clássicos.
Gravava músicas do rádio, copiava de LPs e duplicava fitas. Meu sonho era ter um
3 em 1 com dois decks da Gradiente ou
da Aiwa, para fazer cópias com mais qualidade. Meu microsystem do Paraguai deixava o som muito abafado e com ruídos.
Não
guardo as fitas – devidamente rebobinadas e conservadas em caixas de sapato –, só
para acumular coisas. Elas representam uma época da minha vida que passou, da
qual tenho saudades, mas que, sinceramente, não gostaria de reviver. Sou outro.
O que sou, no entanto, devo a esse período também. Quando olho para as caixas,
pego uma das minhas primeiras fitas e a ponho para tocar, faço uma viagem ao
passado, para depois voltar ao presente e chegar à conclusão: como eu era
ridículo e tinha péssimo gosto.
Mudamos
de casa, mudamos nossa própria casa, mudamos os gostos, mudamos quem somos. Nossas
lembranças, no entanto, não mudam. Elas ficam. Assim como fica a sensação de que
sou mais feliz sem precisar de fitas cassetes com fitas durex.
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