A morte do leitor
Esses dias o escritor Gustavo Melo Czekster andou
escrevendo um texto sobre o livro do Daniel Pennac que eu ia comentar e acabei
esquecendo. Há pouco, uma postagem no Facebook me reavivou a memória. Sou dos
poucos, e o Gustavo é um deles, que não veem com bons olhos os direitos do
leitor escritos pelo Daniel Pennac. É um desserviço (não gosto muito dessa
expressão, mas é a que me vem à mente no momento) à literatura.
Devido a uma preguiça macunaímica, me apoio em
Pedro Eiras, no seu “Substâncias perigosas”, que já comentei por aqui. Ele escreve, assim como o Gustavo, que “o leitor não tem direitos nenhuns. A sua única soberania
consiste em obedecer. E não é pouco. Não pode abandonar o livro, nem saltar
páginas. A leitura é monacal: inventa um claustro, regras, votos. Exige ao
leitor que morra para o mundo, que se emparede entre as páginas.”
E continua: “Se fizer com o texto o que me
apetecer, limito-me a cumprir o meu desejo. Não leio, só existo tal como eu
sou. Mas ler deixar de existir.”
“Sob o pretexto de libertar o leitor, Daniel
Pennac, destrói-o, educando terroristas da leitura que vão apagando as
descrições em Eça, saltando as digressões em Musil, simplificando o vocabulário
em Aquilino, “corrigindo” a pontuação em Saramago. Pelo contrário, acredito que
o texto pode quase tudo, o leitor quase nada. Ler é obedecer. Se Daniel Pennac
mata o leitor, é porque, ao dar-lhe todas as liberdades, o condena ao tédio.
Apenas vive o texto que nos contesta.”
“Aonde quero chegar? Aqui: se soubermos ler,
sabemos que a literatura pode tudo sobre nós. Incluindo matar-nos. Devemos tornar-nos
dignos da ameaça”, conclui o escritor português.
É comum hoje, com a pretensão de nivelar por baixo
a literatura, vê-la apenas como mais uma fonte de entretenimento semelhante a
outras como o cinema, a música. Para tanto, tornou-se moda criticar aqueles que
cultivam algo mais sofisticado, taxando-os de pedantes, arrogantes, chatos,
destruidores de leitores. Em seu artigo na Folha de São Paulo de hoje, Michel
Laub chama isso de “populismo anti-intelectual”. Mas assim como acontece com o
cinema e com a música, há uma literatura mais elaborada, um trabalho acurado
com a linguagem e com referências culturais as mais diversas, que fogem desse
padrão de entretenimento. Não se pode destruí-la para dar lugar a outra mais
simples, que até encanta, conquista leitores e blá, blá, blá, porém não exige
muito de quem lê, não o desafia, mas sim o acomoda.
Julio Cortázar escreve no conto “Continuidad de
los parques”, publicado no volume “Final del juego", que andei lendo com meus
alunos, a história de um leitor sentado em uma poltrona de veludo verde e de
costas para a porta, que lê um romance desses de best-seller, em que uma mulher
planeja com seu amante a morte do marido. Quando o provável assassino se
aproxima do provável assassinado, vemos que este também está sentado em uma
poltrona de veludo verde e de costas para a porta, lendo um romance, provavelmente
desses de best-seller, que uma mulher planeja...
É a morte do leitor ou eterno retorno do que nunca
terminou?
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