Cortázar assassina o leitor
“Continuidad de los parques”, de Julio Cortázar, é
um conto que não tem final, mas poderia assinalar o fim, a morte, de um tipo de
leitor. Aquele leitor que apenas passivamente lê, considera uma narrativa uma simples
distração, entretenimento. Esse leitor, inclusive, não entenderá o conto e, por
conseguinte, o achará ruim. Esse leitor é quem está estragando a literatura
como arte. Ele é contra arte ou tem uma concepção equivocada do que é arte.
A história que se volta sobre si mesma tem como protagonista
uma pessoa rica, negociante, dono de uma propriedade rural onde se refugia do
cotidiano e aproveita para ler um romance na sua poltrona de veludo verde, de
costas para a porta e com vista para um parque de carvalhos. A história dentro
da história conta o encontro de um casal de amantes que planeja a morte do
marido. Quando o amante vai cumprir sua tarefa, punhal em mãos, seguindo a
orientação da mulher, passa por um parque de carvalhos, entra em uma sala onde
está sua vítima, de costas para a porta, numa poltrona de veludo verde e lendo
um romance.
O resumo, claro, estraga o conto, pois falta a
tensão necessária. Mas percebemos nele essa circularidade proposta por
Cortázar, presente também em outros contos e no seu monumental romance Rayuela (O jogo da amarelinha). O leitor
lê uma história em que ele seria assassinado. Seria, pois o ato não se consuma.
O final fica em aberto, ou fechado de forma circular, pois a vítima, o leitor,
está lendo um romance que conta a história de amantes que planejam a morte do
marido que está lendo um romance que conta a história... ad infinitum.
Oroboro, anel de Moebius (por sinal, o nome de
outro conto do Cortázar), o escorpião cravando em si mesmo o ferrão, a pintura
de MC Escher em que a mão desenha outra mão que desenha outra mão... Há vários
símbolos e metáforas que podemos pôr nesse jogo. Também somos, como lembra
Gustavo Bernardo em um artigo de seu livro Conversas
com um professor de literatura, leitores de um leitor nesse círculo
infinito: “A história continua na leitura da história que por sua vez continua
na leitura da história dentro da história: um parque de carvalhos e palavras se
comunica com outro parque de carvalhos e palavras.”
O conto abre o volume Final de jogo, que está sendo lançado pela Civilização Brasileira,
com tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman.
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