Como se fôssemos marionetes de mulheres
Elvira Vigna é uma
das grandes narradoras no panorama atual da nossa literatura. Seu estilo é
original, formado por frases curtas, com ideias que às vezes se interrompem,
retornam ou ficam mesmo incompletas, cabendo ao leitor preencher as lacunas. No
seu último romance, fiquei incomodado com as mudanças de parágrafos, que se
tornam curtos, formados em alguns trechos por frases umas sob as outras, mais parecendo
conjuntos de versos. Na prosa, isso faz com que a leitura seja rápida.
Apressada.
Não gosto disso.
Dá para perceber?
Por isso, pensei
muitas vezes em largar o romance.
Mas fui em frente.
Pois é um romance de
Elvira Vigna.
E gostei dos outros romances
dela.
Como se estivéssemos em palimpsesto de putas
(Companhia das Letras, 216 páginas, disponível também em e-book) é um título que
já permite fazer algumas intepretações e acaba conduzindo, influenciando nossa
leitura. Palimpsesto, segundo o dicionário Houaiss, é “um pergaminho cujo texto
foi escrito em cima do outro que fora raspado”. Pode-se pensar no estilo da
escritora, que parece escrever e depois apagar, porém com vestígios que o
leitor possa encontrar. Pode-se pensar nas camadas de leituras que o leitor
pode decifrar. Pode-se pensar nas camadas de personalidades que tem uma
prostituta: a mãe, a filha, a estudante, a retirante que se escondem na pele da
garota de programa, a vida ou as vidas que estão escondidas atrás da máscara
que ela usa para atender seus clientes. Pode-se pensar em quantos homens
ficaram em cima de uma puta, cada um deixando seus restos de células sobre o
corpo, formando camadas e mais camadas de histórias. Ou pode-se pensar nas
putas que ficaram embaixo de João, um dos protagonistas, e foram várias, cada
uma com suas histórias, cada uma gerando camadas na narrativa, vestígios do
passado que são deixados à mostra através da fala de João para a narradora.
Esta, não por acaso, trabalha como
designer, planejando reformas de interiores, “apagando” o velho para renová-lo.
Vai fazer um serviço para o escritório da editora onde João trabalha.
Conhecem-se. Conversa vai, conversa vem, ele começa a contar suas histórias com
as prostitutas, ela se interessa pelas histórias, por isso deixa João pensar
que é lésbica só porque divide o aluguel de um apartamento com uma mulher, a
Mariana, por sinal prostituta, e que tem um filho, Gael. Deixa João pensar que,
sendo lésbica, vai compreender suas histórias, pois entende de “putaria”.
“Sou lésbica, o que ele notou por causa da irritação que
qualquer um veria, entre mim e o Arquiteto, durante a visita profissional ao
escritório dele uns meses antes. E sou lésbica também porque uso botas, calça
preta de napa, camisa masculina sem sutiã, cabelo curto. E porque não escondo
uma raiva do mundo que não há jeito de conciliar com qualquer ideia de feminino
que ele possa ter.”
A narrador, então, reflete sobre
os depoimentos de João, julgando-o, claro, como um machista contumaz. Elvira
Vigna, no entanto, não carrega nenhuma bandeira feminista, não há nada de
panfletário nos seus romances e é isso que também a torna a boa escritora que
é. O que temos aqui é uma boa história (ou várias boas histórias) sobre o
relacionamento humano, mesmo que parta de relacionamentos em que o homem se
considere no poder. Na verdade, quem conduz o homem é a mulher. Ela é origem de
tudo. Está nela a origem do mundo:
“Não conhece Courbet.
Não conhecem, nenhum deles. Nunca ouviram falar. Não
viram, nem ele nem os colegas dele, nunca, uma reprodução de “A origem do
mundo”. Intuem que há um mundo. Um outro mundo. Que tem de haver algo melhor
que se inicia ali. Ou que é possível começar tudo outra vez, dar origem a um
mundo por ali. Na buceta. Não se pode criticá-los. Courbet também achava.”
O homem é o joguete da mulher.
João foi a marionete das prostitutas. Elas que o usavam, assim como a narradora
o usa para contar suas histórias. E assim como Elvira me usou para que chegasse
ao fim da narrativa e escrevesse sobre. Obedeço.
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