Essa terra não tem dono


Sempre que encontro em sebos uma edição da Coleção Nosso Tempo, da Editora Ática, organizada por Jiro Takahashi nos anos 70, não penso duas vezes em adquiri-la. Somente as capas elaboradas por Elifas Andriato (cujas ilustrações também estampavam capas e encartes de LPs da MPB) valem muito artisticamente. A capa de Essa terra, de Antônio Torres, me chamou a atenção em uma de minhas garimpagens em sebos (ou num balaio de feira do livro?) já faz mais de 15 anos. Nela, um homem com a boca aberta, língua para fora e uma grossa corda amarrada ao pescoço. O suicídio, como sabem meus poucos leitores, é meu tema obsessivo.
Acabei relendo há pouco o romance nessa edição que ainda tenho, mas há uma mais recente pela Record. Narra, em sua primeira parte intitulada “Essa terra me chama”, a volta de Nelo à cidade de Junco, interior da Bahia, depois de 20 anos morando em São Paulo, um dos tantos retirantes que tenta a sorte na cidade grande. Seu irmão, Totonhim, é quem narra essa volta, ele que foi o único da família a ficar na cidade, e também narra, logo no início do romance, a descoberta do corpo do irmão enforcado: “Atordoado, me apressei e bati na porta e bastou uma única batida para que ela se abrisse — e para que eu fosse o primeiro a ver o pescoço do meu irmão pendurado na corda, no armador da rede.”
Na segunda parte, “Essa terra me enxota”, o narrador muda para a terceira pessoa, mas com foco no pai, quando ele ainda morava no Junco e contraiu dívidas com um banco, considerado o Anticristo: “os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo (...). – Compadre, banco é treta. Banco escraviza o homem como o jogo e a bebida”. É nesse bloco que lemos um dos trechos mais bonitos do romance: “Sua escrita era outra e essa ele tinha orgulho de fazer bem: riscos amarronzados sobre a terra arada, a terra bonita e macia, generosa o ano inteiro. A melhor caneta do mundo é o cabo de uma enxada.” Sua mãe ganha destaque na parte “Essa terra me enlouquece”, porém ela aparece sempre ignorando os demais filhos e pedindo a volta do Nelo.
Entre e idas e vindas no tempo, frases fragmentadas que emulam a caótica vida dos protagonistas, blocos que ora focam um ora focam outro personagem a partir de alternância de vozes, o romancista não nega a influência de William Faulkner, declarada a partir da epígrafe retirada de O som e a fúria. A decadência de uma família, as alusões bíblicas (o filho pródigo, o Apocalipse), a morte que desestrutura o desestruturado e o pai que constrói o caixão com as próprias mãos (que nos remete a Enquanto agonizo) confirmam a referência. A linguagem, porém, é brasileiríssima, baianíssima, e muito bem articulada por Antônio Torres nessa que era, no ano de 1976, sua recém-lançada terceira obra. Mais de 40 anos, Essa terra figura como uma leitura indispensável.

Comentários

Jiro disse…
Cassionei, de uma forma sintética você conseguiu captar os pontos cruciais, o ritmo e a linguagem de Essa terra, essa maravilha de Antonio Torres. A pegada do seu texto é fantástica, parabéns e obrigado. Um grande abraço, com admiração.
Cassionei Petry disse…
Obrigado, Jiro. Parabéns pelo sempre excelente trabalho de editor.

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