Texto meu no Caderno de Sábado do Correio do Povo



Dividi com Léa Masina e Luiz Antonio de Assis Brasil as páginas centrais do Caderno de Sábado do Correio do Povo, de Porto Alegre.


Romance ou ensaio: o leitor decide 

Conhecia somente a obra ensaística de Silviano Santiago e nunca havia me interessado por sua ficção. Se Machado (Companhia das Letras, 421 páginas), sua recente obra, fosse vendida como ensaio e não como um romance, conforme consta na capa, não teria saído da leitura relativamente decepcionado. Esperava, a partir dos releases e comentários sobre o livro, uma narrativa sobre os últimos anos da vida de Machado de Assis. Na quarta capa, há a informação sobre o caráter híbrido da obra, porém ela é mais ensaio do que romance. Faltam personagens agindo e sobram análises literárias e historiográficas. 
Para que se tenha um romance, ou seja, uma narrativa longa, faz-se necessário um enredo. Silviano Santiago sabe muito bem disso, afinal é um grande crítico. Mesmo o espanhol Enrique Vila-Matas, que admite escrever ensaios disfarçados de romance, não abdica de contar uma história. Não há enredo em Machado porque os personagens principais, o próprio Bruxo do Cosme Velho e Mário de Alencar (filho do autor de Iracema), aparecem muito pouco. Logo no início, por exemplo, quando o narrador nos fala que está lendo as correspondências do autor de Dom Casmurro e relata a rotina do velho recém viúvo, parte depois para a escrita de vários parágrafos sobre o jornalista Carlos de Laet, que estudou a epilepsia, e sobre Gustave Flaubert, "que também padecera do grande mal". Terminado o capítulo, porém, estes não retornam mais para a história. O assunto é relevante, pois Machado de Assis também é epilético, bem como Mário de Alencar, que começa a indicar sinais da doença. A digressão, porém, se torna longa demais, assim como todas as digressões que engrossam o "romance". 
 Silviano tenta quebrar regras, como o fez Machado de Assis, e o narrador, ou o ensaísta, admira justamente essa característica do autor: "Quebra de gêneros literários na elaboração de uma obra artística (...). Todas essas e outras quebras – admiro a genialidade do romancista (...)". No entanto, Santiago não convence na inovação. Falta equilíbrio entre romance e ensaio. É inegável, porém, que escreve bem, demonstra uma pesquisa bem realizada, utiliza-se de fotos, gravuras e reproduções de manuscritos e pinturas que casam muito bem com o texto.  
A descrição do Rio de Janeiro da virada do século XIX para o século XX, principalmente as reformas realizadas pelo prefeito Pereira Passos, é relatada com riqueza de detalhes, com amparo de imagens e reproduções de páginas dos jornais da época. Há também uma pesquisa minuciosa sobre os fatos do cotidiano da Capital Federal, entre os quais a roda dos enjeitados e a proliferação dos "amigos do alheio", como eram chamados os ladrões. A arquitetura também se faz presente com a análise dos prédios e palacetes. As digressões se alongam mais ainda com a análise de contos e romances machadianos, tudo isso interrompendo o relato sobre os últimos dias do escritor. Quando o leitor acha que os conflitos essenciais para uma narrativa vão acontecer, surge outra análise exaustiva sobre um tema que até tem a ver com o que está acontecendo com os personagens, entretanto se alonga monotonamente.  
Mantive-me, porém, firme na leitura, afinal o que me fez ler o livro e ir até o final foi a especulação sobre Mário de Alencar ser na verdade filho de Machado de Assis. O escritor Humberto de Campos havia levantado essa dúvida em seu Diário secreto: “Dom Casmurro não será uma história verdadeira? Aquele amigo que trai o amigo, aquele filho que fica de uns amores clandestinos, não seriam páginas de uma autobiografia?”, questiona Campos na obra que foi publicada nos anos 50, décadas depois de sua morte, e que causou polêmica pelos relatos pessoais sobre personalidades com as quais conviveu. 
Autores contemporâneos como Gustavo Bernardo e Luiz Vilela repercutiram, sob um prisma ficcional, essa possibilidade. Gostaria de ver uma abordagem diferente e, de certa forma, Silviano Santiago se sai bem, afinal mais sugere do que revela a confirmação do boato. Além de mencionar a epilepsia da qual os dois M. de A. sofrem, é discutida a proteção que o presidente da Academia Brasileira de Letras tem com relação ao escritor mais jovem.  Santiago aponta, no entanto, uma "paternidade espiritual", com Mário assumindo um papel de "herdeiro simbólico" do grande mestre. 
Se o nobre leitor quer saber se vale ou não a pena ler Machado, digo que sim, caso busque por um bom ensaio. Se a busca for por um romance, uma narrativa, enfim, a decepção pode ser grande. Uso aqui as palavras do próprio narrador, ou ensaísta, quando comenta os textos de Joaquim Nabuco, em outras das tantas digressões: "Nabuco tem razão nos seus folhetins de O Globo. A boa leitura da obra de arte não é a do autor, mas a que o leitor faz da obra alheia, em diálogo crítico com ela". O leitor, portanto, deve decidir.

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