O gozo do assassino
“A vida se
transformara em viver as ilusões alheias”, diz o narrador do conto “Não morto,
apenas dormindo”. Somos, a partir daí, transportados para mundo do ilusionista Gustavo Melo Czekster, vivenciando
situações absurdas, diálogos insólitos, fatos estranhos. Não há amanhã (Editora Zouk, 160 páginas) é o segundo
livros de contos do autor, porém não parece. A mão segura de Gustavo denota uma
obra bem acabada, quase perfeita, de um sujeito extremamente experiente.
Acontece que ele demorou para publicar essa nova obra, lapidando o texto. O
resultado está aí.
“O livro pede para
ser aberto, sorvido”, diz o protagonista de “O silêncio”. Diferentemente do
personagem, no entanto, não resisti a sua súplica, não contive a curiosidade e
me arremessei, aderindo à seita descoberta pelo narrador de “Os que se arremessam”,
formada por pessoas que se jogam na vida, literalmente falando: na frente de
carros, do alto de um edifício, do alto de cachoeiras. O leitor, incauto, demora
para perceber que também faz parte disso, afinal se atira na leitura, assim
como o texto cai com todo seu peso sobre quem o lê: “talvez todas as histórias,
em sua essência, sejam formas de se jogar em alguém”.
Imagine você ver não
um duplo, mas vários símiles seus. É o que acontece com a protagonista de “Os
problemas de ser Cláudia”, quando chega em casa, preocupada com os afazeres
domésticos e se depara com uma cópia sua já realizando suas tarefas. Até aí, ô
coisa boa! No entanto, outras vão aparecendo, fazendo tudo, tudo mesmo. O que
era bom, pode se transformar em algo indesejado. “O inferno era as outras
Cláudias”.
Em primeira parte de
“Efemeridade”, que se desdobra em mais três variações durante o livro, Paulo, “um
porteiro simpático”, sai dando tiros numa praça, acertando em borboletas e
crianças, depois de se espantar com um documentário do National Geographic que
mostra, ao que parece, o nascimento de seres, provavelmente nós, humanos, podendo,
no entanto, ser outro animal: “corpos besuntados livrando-se da quente prisão,
o espanto de quem enxerga o mundo pela primeira vez, membros desconexos
encontrando funcionalidade”. Bebês ou adultos se livrando da Matrix? Esse e outros
contos, na verdade todos os demais, tratam do sentido da existência, pois sentido
é a palavra-chave da obra, presente em dois títulos e mencionada por alguns
personagens.
Qual o sentido da
criação artística? “Cinco (ou infinitos) fragmentos em busca de”, cujo enredo
glosa, como se percebe pelo título, Luigi Pirandello, e “Mas não falam” são
exemplos metalinguísticos da obra. Este último trata de um escritor recluso que
aceita a proposta do editor para realizar palestras sobre sua obra, porém com a
condição de que sejam em cidades pequenas, fora dos grandes centros culturais.
Quando se depara com o público que espera para assisti-lo, ele, o editor e nós,
leitores, somos surpreendidos. Em “Um outro sentido”, Gustavo se torna um personagem,
odiado por uma blogueira por ter se recusado a ceder uma entrevista. Ela acaba
considerando o próprio livro Não há
amanhã como “uma excrescência”, “objeto de puro asco”, “uma declaração de
ódio à Literatura”. Seus planos, porém, vão além de apenas criticar a obra e o
autor.
“Não existe texto
inocente, o que implica em dizer que todo texto é um crime passional”, diz o
narrador e protagonista de outro conto fenomenal. Gustavo Melo Czekster segue
perpetuando crimes, inspirado por Poe, Kafka, Borges e outros criminosos. O
leitor, por sua vez, achando que é um cúmplice, na verdade é a vítima, que não
percebe que tomou, pelas mãos do ilusionista, um cálice de veneno. O efeito não
é imediato. Mas esse é o gozo do assassino: ver sua vítima sucumbindo aos
poucos, pelo menos não antes da última palavra lida. Adivinha qual é essa
palavra?
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