ACEITA UM COPO DE LEITE, CARO (E)LEITOR?
“− Então, o que é que vai ser, hein?
Éramos eu, ou seja, Alex, e meus três druguis, ou
seja, Pete, Georgie e Tosko, Tosko porque ele era muito tosco, e estávamos no
Lactobar Korova botando nossas rassudoks pra funcionar e ver o que fazer
naquela noite de inverno sem-vergonha, fria, escura e miserável, embora seca. O
Lactobar Korova era um mesto de leite-com, e possa ser, Ó, meus irmãos, que
tenhais esquecido de como eram esses mestos, pois as coisas mudam tão skorre
hoje em dia e todo mundo esquece tão depressa, porque também quase não se lê
mais os jornais mesmo. Bom, o que vendiam ali era leite-com-tudo-e-mais-alguma-coisa.
Eles não tinham autorização para vender álcool, mas ainda não havia leis contra
prodar algumas das novas veshkas que costumavam colocar no bom e velho moloko,
então você podia pitar com velocet, sintemesc, drencrom ou alguma outra veshka
que lhe daria uns belos de uns quinze minutos muito horrorshow só ali,
admirando Bog e Todos os Seus Anjos e Santos no seu sapato esquerdo com luzes
espocando por cima da sua mosga. Ou você podia pitar leite com faca dentro,
como a gente costumava dizer, e isso te aguçava e te deixava pronto para um
vinte-contra-um do cacete, e era isso o que estávamos pitando naquela noite com
a qual começo esta história.”
Alguém
já disse: se torcêssemos um jornal como se faz com uma toalha, pingaria muito
sangue. Claro, isso serve para a TV, nesse caso não apenas nos noticiários,
como também nos filmes, séries e novelas, que estão se especializando na
“estética do tiro”. Muitos afirmam que é a sociedade que está cada vez mais
violenta. Isso é uma verdade em partes, pois a violência cresce
proporcionalmente ao aumento da população. O homem sempre foi um animal
violento. A diferença é que uns controlam esses instintos, enquanto outros não
seguram a fera dentro de si.
O
que acontecerá no futuro? Os otimistas acreditam que tudo pode melhorar, sonham
com um mundo de paz para seus filhos, são utópicos. Os pessimistas, por seu
turno, pintam um mundo sombrio, onde cada vez mais as casas terão cercas eletrificadas
e proliferarão os condomínios fechados. Quem não tiver dinheiro (a “tia
pecúnia”) estará à mercê de gangues, com delinquentes cada vez mais jovens, que
praticarão a “ultraviolência”. Esse cenário distópico aparece em muitos livros
de ficção científica. Entre eles, Laranja mecânica, de Anthony
Burgess (editora Aleph, 288 páginas, tradução de Fábio Fernandes).
“Utopia” é um termo que designa,
literalmente, um lugar que não existe (do grego, “ou”, negação e “topos”,
lugar”). A palavra foi usada pela primeira vez no livro homônimo de Thomas More
para nomear uma ilha onde tudo era perfeito, do sistema de governo às atitudes
dos cidadãos. Por extensão, passou a significar o sonho de um mundo ideal, o
qual muitas vezes seguimos, mesmo sabendo que ele pode nunca acontecer. Miramos
o horizonte e nos guiamos por ele, apesar de nunca o alcançarmos. Já a distopia é
o contrário. Seriam distópicas as sociedades do futuro em que prevalecessem os
regimes totalitários que controlassem os passos e o pensamento do indivíduo
(como no livro 1984, de George Orwell, onde surgiu a
expressão Big Brother), que manipulassem geneticamente os embriões
dos seres humanos para condicioná-los a agirem conforme o sistema (Admirávelmundo novo, de Aldous Huxley) ou destruíssem obras intelectuais para
que as pessoas não aprendessem a questionar a realidade (Fahreinheit 451,
de Ray Bradbury).
No
livro de Burgess, publicado em 1962, vemos uma Inglaterra, num futuro não muito
distante, tomada por gangues juvenis que praticam a ultraviolência. Quem nos
narra a história é um membro de uma dessas gangues, Alex, com uma algaravia de
gírias chamada de linguagem “nadsat” (há um glossário no final do
livro para compreender as expressões). Seus companheiros são “druguis”, que
moram em “flatblocos”, adoram beber “moloko” para depois “itiar” pelas ruas,
espancar “vekios”, estuprar “devotchka”, roubar “tia pecúnia, fazer muitas
coisas “horrorshow” e depois fugir dos “miliquinhas”. Burgess, estudioso da
obra de James Joyce, criou as gírias baseado em línguas do leste europeu. Causa
estranhamento em um primeiro momento, mas com o decorrer da leitura acabamos
nos acostumando com ela, sem contar que, nessa nova edição no Brasil, a
tradução faz fluir bem mais fácil o texto do que a antiga, feita nos anos 70.
Após
todas as atrocidades cometidas, Alex acaba preso e passa por um processo de
reabilitação inovador chamado processo Ludovico. Amarrado a uma cadeira e com
grampos prendendo suas pálpebras, ele assiste a filmes que mostram as ações
cruéis de que o ser humano é capaz de fazer contra seu semelhante, com destaque
para o Holocausto. Ao ser obrigado a assistir as cenas que seguem numa sucessão
frenética, sem poder fechar os seus olhos, Alex é condicionado a ter repulsa
por qualquer situação de violência e, consequentemente, é considerado curado.
Na terceira parte, ocorre a tentativa de voltar a conviver pacificamente dentro
da sociedade e com sua família, mas percebe a dificuldade de aceitação de um
ex-delinquente, ainda mais por reencontrar aqueles que antes foram suas
vítimas.
Laranja
mecânica se tornou mais conhecido depois da
adaptação cinematográfica feita por Stanley Kubrick, com cenas que entraram
para o inconsciente coletivo dos amantes da sétima arte. No filme, porém, os
“druguis” são adultos, ao contrário do romance, em que são adolescentes.
Recentemente, a adaptação de Alice no país da maravilhas também
opta por uma personagem adulta em vez da criança da obra de Lewis Carroll. Será
tudo culpa do “politicamente correto”? De qualquer forma, o romance nos instiga
a refletir sobre o caráter do ser humano que se forma já na infância e sobre
como estamos cada vez mais perdendo o controle dos nossos filhos. Mas também
faz uma crítica ao Estado, que faz muito pouco para curar esse mal da sociedade
e, quando tenta, utiliza métodos errados ao manipular a mente das pessoas. Como
escreveu uma das vítimas dos “druguis”, um escritor, em seu livro que foi
rasgado por Alex, e cujo título é o mesmo do romance de Burgess: “A
tentativa de impor ao homem (...) leis e condições que são apropriadas a uma
criação mecânica, contra isto eu levanto minha caneta-espada”.
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