Um livro que morde
É bom para o meu ego, volta e meia murcho, receber algum
livro de um escritor que está começando ou está num eterno começo como eu, pois
vê nesse crítico interiorano, que tenta a duras penas (no caso a duras
marteladas na tecla do computador) ampliar seu alcance nas redes sociais, uma
oportunidade de também fazer aparecer sua obra, divulgá-la com uma resenha,
mesmo que seja negativa (ou levemente negativa). Às vezes demoro, mas faço
questão de ler os livros que enviam, ainda mais que as médias e as grandes
editoras hoje preferem mandar exemplares para booktubers ou blogueiros sem
pretensões críticas que somente enchem a obra de elogios, com sorrisos para a
câmera mostrando a capa, no caso dos primeiros, ou só reproduzindo o realese da editora, os segundos.
Digressões à parte, leio com prazer e incômodo o livro de
contos Os touros de Basã, de Marco
Aurélio de Souza (Kotter/Patuá, 120 páginas), publicado no ano passado. Como
este crítico que vos escreve, o autor é do interior, mas do Paraná. Boa parte
das histórias se passam justamente em uma cidade interiorana, retratando jovens
e adultos que vão conhecendo as agruras da vida, como o narrador do primeiro
conto, “O lobisomem de Ponta Grossa”, que descobre o quão difícil é acompanhar
a decadência física e psicológica de amigos de infância que se afundam no canto
das Sereias das drogas. Um conto bem escolhido para abrir os trabalhos.
O segundo conto, no entanto, ficou abaixo. Em “Scrap Buk” se
percebe claramente que é um conto escrito na adolescência, pois o autor deixou
as referências ao finado Orkut. Poderia ter dado uma atualizada, pois não há
nada na história que necessitasse situá-lo na primeira década desse século. É
um interessante de exercício de linguagem, no caso de uma jovem que se
vangloria por “pegar” vários caras, “malucada viciada no meu corpo feito eu
fosse pó ou pedra”. Percebe-se, até agora, que as drogas são marcas presentes
nas narrativas, como acontece também no conto que dá título ao livro.
O conto “Coluna social” registra uma linguagem distinta, ao
trazer um texto escrito aos moldes de uma crônica social à moda antiga, em que
o cronista abusa dos floreios retóricos para apontar o que enfeia a cidade no
seu ponto de vista, os mendigos. No final, de uma forma amistosa, relata os
empreendimentos que trazem o progresso da cidade, com a inauguração de um
restaurante de “fast-food” conhecidíssimo.
Em “Demudado”, uma metáfora da injustiça, o ponto de vista é
dos desvalidos, a vez e a voz são deles, porém, eles nada dizem, ficam mudos
diante da injustiça (de quem pensa estar fazendo justiça) contra aqueles que
não têm voz. “Coberto de razão”, por sua vez, reforça a influência de Henry Miller
(explícita na epígrafe do livro e na linguagem sem pudor dos contos), quando o
narrador, cuja idade fica subentendida durante boa parte da história, afirma
que uma garota da escola lhe “deixa o membro desossado em puro mármore”. “Horário
de pico”, com seu título ambíguo, se passa dentro de um ônibus lotado, sendo o
vício aqui o desejo sexual que se torna assédio.
“Animal fronteiriço” e “Passar bem”, no estilo do realismo
fantástico hispanoamericano, retomam a abordagem dos mendigos, vistos pelo
olhar dos outros como bichos, ora substituindo os pombos na praça, ora sendo
dotado como animal de estimação. O contrário acontece com o derradeiro conto, “Satanás”,
nome do cãozinho vira-lata adotado que gosta de morder pernas de velhas
indefesas e que se torna quase um humano e viciado em crack. Um enredo estranho,
que prontamente me lembrou de contos do gênero fantástico de Moacyr Scliar,
como os do livro O carnaval dos animais.
Apesar da idade, Marco Aurélio de Souza já publicou dois
romances e dois livros de poemas. Os
touros de Basã é o primeiro de contos e o terceiro romance está sendo
lançado agora. A julgar por este livro resenhado, é um escritor que gosta de
incomodar o leitor, seguindo a máxima de Kafka: “Apenas deveríamos ler os livros que
nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos
não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?”
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