Crítica sobre "O lado humano", de Otto Lara Resende


Otto Lara Resende era mais jornalista do que escritor, inclusive afirmou isso em entrevistas, mas nunca deixou de escrever e reescrever a sua ficção em busca do estilo perfeito. O único romance do autor mineiro (que morreu em 1992), “O braço direito”, por exemplo, foi modificado à exaustão, a ponto de ser considerado praticamente um novo livro na edição definitiva.

Há tempos queria ler todos os seus contos, porém me faltava justamente o primeiro, “O lado humano”, publicado em 1952. Só o encontrava em sebos na internet, porém com preços exorbitantes, pois não havia reedições. Finalmente agora a Companhia das Letras resolveu preencher a lacuna (acho que o Otto não ia gostar desse lugar-comum) e lançar, juntamente com outras obras, uma nova edição.

“O lado humano” é um conjunto de nove contos que, em princípio, me pareceu distante dos demais livros. Ainda assim, no entanto, é um Otto Lara Resende, portanto a qualidade literária é garantida. E quando digo qualidade literária, me refiro a um apurado senso estético, um controle do diálogo aliado a descrições poéticas com vocabulário que dosa bem a erudição e o coloquialismo. Os temas vão da injustiça social, passando pelo mundo infantil perverso, a burocracia kafkiana, mulheres fatais até chegar à melancolia da velhice.

O conto que intitula a obra dá o tom paradoxal das narrativas, na medida em que elas nos mostram o nosso lado desumano, salvo se pensarmos mesmo que o lado humano é justamente a desumanidade. É comovente, ainda que com pitadas de comicidade, a tentativa do personagem “Euclides José Magalhães, seu criado às ordens”, de fazer com que seu processo seja estudado pelo “doutor”, o narrador da história que, perversamente, vai adiando a demanda, alegando sempre estar ocupado, até que o requerente utiliza uma última cartada, que mexe com os instintos de homem do “doutor”.

“O morto insepulto” tem um quê de literatura fantástica, a partir da história do trabalhador Josias, que vê um nome igual ao seu no obituário do jornal, na lista de pessoas que seriam enterradas naquele dia. Mais uma vez a burocracia aparece, dessa vez na busca de saber sobre “sua” morte, passando por setores e mais setores do IML e do Registro de Óbitos. O cômico aqui faz par com o mórbido e o final, ambíguo, não nos dá um fechamento para a história, o que a faz ficar ressoando na mente do leitor como o barulho da terra “sobre as tábuas surdas e vazias do caixão”.

As crianças que apedrejam um homem na rua em “A pedrada” antecipam um tema que será um dos principais de outro livro do autor, “A boca do inferno”, que para o crítico Malcolm Silverman define-se como o “arquétipo menino-homem”, que “revela uma tendência bifurcada, ou para a comovente inocência (...) ou para a sádica criminalidade”. É um dos contos mais cruéis do livro, junto com “Terêncio e o mar”, cujo protagonista, o interiorano que vai pela primeira vez à praia, é injustamente acusado de assédio e quase linchado. É esse nosso lado humano?

Outros dois contos que destaco são “Velhos”, sobre a vida sem perspectivas de dois idosos no campo, e “O calcanhar de Aquiles”, de um pintor que deixa a amante do amigo morar em sua casa o que, por certo, traz desdobramentos talvez previsíveis, mas que mostra o lado humano perigoso do ser feminino e também o lado humano mais primitivo do masculino.

“A humanidade é desumana”, cantou Renato Russo, o que seria uma boa epígrafe para o livro de Otto Lara Resende.


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