“Ego trip” na quarentena


 


“Viagem ao redor do meu quarto”, do francês Xavier de Maistre (li na tradução do poeta Armindo Trevisan publicada pela extinta Mercado Aberto), é um romance ideal para se ler nos dias atuais, em que um vírus faz com que fiquemos confinados em nossas casas, com um mínimo de contato com o mundo exterior. Publicado em 1794, teve uma continuação em 1825, “Expedição noturna ao redor do meu quarto”. Já o nome do autor, em que pese ser pouco lido por aqui, é conhecido pelo leitor brasileiro devido à influência que exerceu no nosso maior escritor, Machado de Assis.

No clássico “Memórias póstumas de Brás Cubas”, o narrador-protagonista escreve uma nota em que reconhece ter adotado “a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre”. Num prólogo à terceira edição, Machado afirma, depois de citar a mesma frase de seu personagem: “Toda essa gente viajou: Xavier de Maistre à roda do quarto, Garrett na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode talvez dizer que viajou à roda da vida”.

Na prática, o romance machadiano adota, como seus antecessores (Laurence Sterne foi o autor de “A vida e opiniões de Tristram Shandy”), a conversa do narrador com o leitor, mais precisamente com a leitora (consumidora dos romances da época); capítulos curtos; recursos tipográficos, como os capítulos compostos apenas com pontos ou outros sinais gráficos (recursos que Machado usou também em “Dom Casmurro”); digressões filosóficas; uma fina ironia e humor cáustico; “a interpenetração do riso e da melancolia”, segundo Sérgio Paulo Rouanet; e autodescrições dos protagonistas ora depreciativas ora elogiosas. “Viagem ao redor do meu quarto” é assim. Conforme escreveu o crítico Antonio Candido, é uma “narrativa caprichosa, digressiva, que vai e vem, sai da estrada para tomar atalhos, cultiva o a-propósito, apaga a linha reta, suprime conexões”. 

Para quem pensa que a autoficção é algo novo na Literatura, “Viagem ao redor do meu quarto” traz o próprio autor relatando seus 42 dias confinados em sua habitação (“Proibiram-me de percorrer uma cidade, um ponto; mas deixaram-me o universo inteiro: a imensidade e a eternidade estão às minhas ordens”). Não é revelado o motivo, mas se sabe que Xavier de Maistre, militar, teria sido condenado à prisão domiciliar por desobediência, ao participar de um duelo. Nesse isolamento, promove uma viagem no seu estúdio, misto de quarto e biblioteca, começando pela cama, sobre a qual faz uma observação muito pertinente: “Uma cama nos vê nascer e nos vê morrer; é o teatro variável no qual o gênero humano desempenha, alternadamente, dramas interessantes, farsas risíveis e tragédias espantosas. É um berço guarnecido de flores; é o trono do amor; é um sepulcro”.

Fala sobre o espelho, os quadros das paredes, sobre o retrato de Madame de Hautcastel, cujo pó ele limpa passando o pano calmamente pelo rosto da mulher e depois “por cima do seio: foi questão de um momento; todo o retrato pareceu renascer e sair do nada (...). Sim, ei-la, a mulher adorada”. Menciona sua poltrona (“é da maior utilidade para um homem meditativo”) e por fim se dedica a explorar a escrivaninha, suas gavetas e as “prateleiras que servem de biblioteca”.

Na verdade, porém, o narrador realiza uma odisseia para dentro de si mesmo, se autoanalisando a partir da teoria da “alma” versus a “besta” (o “animal” em outras traduções), chamada em momentos de a “outra”, “verdadeiro indivíduo, que tem sua existência separada, os seus gostos, as suas inclinações, a sua vontade” (seria uma antecipação das teorias de Freud?). Parece que é a “besta” que o conduz e, por conseguinte, conduz também o leitor a acompanhar essa “ego trip”. Nada melhor hoje do que viajar para dentro do próprio eu.


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