Uma existência melancólica



“Seja breve. Deixe o banheiro limpo para o próximo. O próximo pode ser você.” É o que diz um aviso em um banheiro de um hotel sem estrelas de uma cidade do interior de Minas Gerais onde se hospeda Oséias, de apelido Peninha, para aos amigos da adolescência, ou Zézo, para os parentes próximos. E o personagem repete para si várias vezes: “o próximo pode ser você”. O leitor se pergunta: o próximo a quê?

Oséias é o protagonista de “Verão tardio”, de Luiz Ruffato (Companhia das Letras, 232 páginas), o mais recente romance de um escritor que reelabora suas obras à exaustão e faz com que toda ela dialogue. Temáticas, técnicas de estilo, personagens, espaços, tudo converge num universo particular do autor. A cidade de Cataguases é o centro desse cosmo ruffatiano.

É nessa cidade que nasceu Oséias e é a essa cidade que ele volta depois de viver e trabalhar em São Paulo durante mais de três décadas. Num primeiro momento, não sabemos o motivo, mas as pistas vão sendo deixadas pelas suas falas, pensamentos difusos num fluxo de consciência e reminiscências do passado (“O passado são ruínas”). É esse passado que ele vem reencontrar na figura de familiares que deixou, mais precisamente três irmãos que vivem em classes sociais distintas.

A questão de classes é uma temática constante na obra de Luiz Ruffato, reiterada em suas entrevistas em que afirma que o pobre, entre a linha da miséria e a classe média, é uma camada da população pouco abordada na literatura brasileira. Suas histórias trazem trabalhadores como o pai de Oséias, operário da indústria têxtil, e a mãe, costureira. O próprio protagonista vive na penúria, desempregado e usando o que resta do FGTS.

É interessante a escolha da profissão dos pais. De têxtil vem a palavra texto e a atividade de costura lembra as palavras “costuradas” que compõe esse texto. Ruffato, como as Parcas, tece a vida de Oséias em idas e vindas e o leitor acompanha esse desenrolar aflito, percebendo que a qualquer momento o fio pode ser cortado.

Luiz Ruffato não radicaliza na linguagem, como o fez em “Eles eram muito cavalos” e em outras obras, às vezes de forma exagerada e forçada. Em “Verão tardio”, tudo está na medida certa, desde a fala nos diálogos até o fluxo de consciência, ora nas pausas com pontuação, ora sem pontuação, expressando a diluição do pensamento do personagem, próximo ao sono ou quando ele passa mal. Às vezes a narrativa corre rápido e, em outros momentos, é lenta, com descrições detalhadas de atividades triviais, como a ida ao banheiro ou os lanches frugais do personagem. Ele não usa relógio, nem tem celular, mas sempre procura por um relógio para saber as horas no lugar onde está. Muitos que encontra não funcionam. O tempo escapa dele ao mesmo tempo que o devora.

Há mais de um motivo para a volta de Oséias a sua cidade natal, entre elas um trauma que percorre a narrativa, um fato na infância que o fez se sentir culpado em todos esses anos. Nessa volta, chama a atenção a indiferença com que é recebido por dois dos irmãos, justamente os que têm mais dinheiro. As relações a familiares são muito frias, inclusive por parte do próprio protagonista, que não tem mais contato com o filho e com seus pais, que não visitava, e agora estão mortos. Os fios entre ele e a família foram cortados e não há mais ninguém, que seria a mãe, para costurá-los.

Melancólico é a palavra que para mim define o romance. Melancólica é a vida de Oséias, melancólicas são as vidas dos outros personagens (ricos ou pobres), melancólica é a vida, melancólico é o país representado na narrativa, que parece ser feliz ouvindo e dançando as músicas aparentemente alegres dos funks e sertanejos cujas letras acabam retratando também nossa melancolia. O leitor conhece esse país?

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