O vírus e Sísifo
(gravura de Bernard Picart - Sisyphus Pushing His Stone up a Mountain, 1731) |
Vi esses dias na internet uma charge em que mostrava Sísifo
durante a quarentena sentado no sofá, com um controle remoto na mão e sua enorme
pedra ao lado. O absurdo dos dias atuais é muito bem retratado na ilustração,
com humor sutil, visto que estamos (quem pode ficar em casa, claro) todos os
dias revivendo o marasmo de um cotidiano sem sentido.
Para quem não sabe quem é Sísifo, me refiro ao mito grego do
homem que tentou enganar os deuses, ao fugir da morte, no reino de Hades e, por
isso, foi condenado, durante toda a eternidade, a rolar uma enorme rocha até o
topo de um monte. Chegando ao destino, no final da jornada, a pedra descia
rolando novamente devido a seu peso. E de novo Sísifo retomava seu trabalho e a
pedra voltava ao pé do monte. E assim prosseguiu, infinitamente.
O escritor francês Maurice Blanchot escreveu nos anos 40
sobre o mito, numa brilhante resenha em que analisa o hoje clássico, mas que na
época recém havia saído do forno, livro de ensaios de outro francês, Albert
Camus, que tem como título justamente “O mito de Sísifo”. Para Blanchot, esse “herói
do tormento” foi “condenado ao horror de um trabalho sem redenção, sempre idêntico,
sempre sem motivo desde o momento em que termina”. Costuma-se fazer a analogia
com o trabalho diário do cidadão. Esse trabalho, no entanto, tem a recompensa
do salário e, por consequência, resulta na sobrevivência do indivíduo e de quem
o rodeia. Não é em vão, como o de Sísifo.
Acontece que agora, tudo o que se faz, ou não se faz, resulta
inútil. Chegamos ao final do dia, lemos sobre as atualizações de mortes e nos
horrorizamos. Tudo piora. Esperamos que o outro dia seja diferente, mas não. O sacrifício
não resulta em recompensas e, por isso, muitos se questionam se vale a pena tanta
esforço de não fazer nada ou de fazer algo que acaba não resultando em nada. “É
o útil-inútil”, apontou Maurice Blanchot.
O que nos condena hoje a esse sacrifício que parece não ter
sentido não é um deus vingativo, mas sim um ser minúsculo, o qual não
enxergamos, tornando tudo mais absurdo, pois revela a fraqueza desse ser que se
julga superior a tudo, o homem.
Somos pequenos diante de um ser menor em tamanho, somos
pequenos ao não sabermos lidar com ele, somos pequenos ao não sabermos nos
aliar adequadamente aos nossos pares para destruir esse inimigo, pois nos
digladiamos querendo ter mais razão do que o outro, enquanto o vírus gargalha diante
de nossa inoperância.
Os piores, porém, são os que gargalham diante do absurdo,
que relativizam as milhares de mortes. “A rocha ainda rola”, escreveu Camus. E ela
esmaga, acrescento, nossa humanidade. O o que resta dela.
(Cassionei Niches Petry – escritor e professor)
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