Sobre "A peste", de Camus, na minha coluna no Jornal Arauto


“A peste”, de Camus, e a ajuda que não cai do céu

 A obra literária mais citada atualmente, quando ser quer fazer referência à peste que apavora o mundo, na verdade não trata exatamente de nenhuma doença (pelo menos física). “A peste”, de Albert Camus, romance relançado pela Record (tradução de Valerie Rumjanek), é uma alegoria sobre a ocupação nazista (uma doença moral) na França durante a Segunda Guerra Mundial, segundo o próprio autor em uma carta a Roland Barthes, em resposta a uma crítica literária do autor de “O grau zero da escritura” nos anos 50.

Logicamente (ou ilogicamente), a Literatura se abre a muitas interpretações, mesmo que essas sejam literais, que é o caso de encarar a peste do romance como realmente uma peste. O livro de Camus inicialmente vinha com o gênero crônica acompanhando o título, como afirma o próprio Barthes na resenha mencionada, e inclusive isso aparece na primeira frase: “Os curiosos acontecimentos que são o objeto desta crônica...”. Seria uma descrição cronológica, quase uma diário, sobre uma doença devastando uma cidade qualquer nos anos de 1940. A escolhida foi Oran, no litoral da Argélia, cuja localização geográfica a torna quase uma ilha, por conseguinte, facilmente “isolável” do resto do país.

O narrador, ou cronista, cuja identidade sem muita surpresa nos é revelada no final, acompanha as agruras de alguns personagens, principalmente Bernard Rieux, um médico, que cuida das vítimas, porém sem ter muito o que fazer, e também reflete sobre a condição humana em meio ao caos gerado. Tudo começa com ratos que aparecem mortos, para depois começarem a surgir os primeiros seres humanos atingidos por uma enfermidade praticamente sem cura.

Há todo o processo parecido com o que estamos passando nos últimos dias: quarentena, que no romance dura quase um ano, os preços dos produtos de primeira necessidade vendidos por preços exorbitantes, as reuniões conflituosas dos políticos, as pessoas que demoram a se dar conta do perigo (“... as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas desprevenidas”), as tentativas de fuga da cidade sitiada (um jornalista que casualmente estava na cidade e queria voltar para Paris) e, claro, muitas mortes, que resultam, em certo momento, em impossibilidade de enterros dignos.

Quando acompanho os dados em tempo real do crescimento do coronavírus no mundo e a forma como ele vai se alastrando e chegando perto de nós, lembro do próprio Rieux, que vê a peste atingindo as pessoas próximas a ele e só não se contamina devido a um soro cuja eficácia de prevenção se mostra não tão eficiente em alguns casos.

Se ainda tenho receio, que ainda não chegou ao medo, é porque tudo ainda parece ficção, algo inimaginável, tendo em vista o que o homem já alcançou em tecnologia, curas, etc. Sinto-me como Rieux, que responde a um amigo se acredita em Deus: “─ Não, mas que quer dizer isso? Estou nas trevas e tento ver claro.” Como acreditar num ser onipotente que permite desgraças ou que castiga seus filhos por não o adorarem como ele quer? Por isso, não me venham falar em orar e ter fé. “─ Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o céu, onde ele se cala”. 


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