Sobre "A peste", de Camus, na minha coluna no Jornal Arauto
“A peste”, de Camus, e a ajuda que não cai do céu
Logicamente (ou ilogicamente), a Literatura se abre a muitas
interpretações, mesmo que essas sejam literais, que é o caso de encarar a peste
do romance como realmente uma peste. O livro de Camus inicialmente vinha com o
gênero crônica acompanhando o título, como afirma o próprio Barthes na resenha
mencionada, e inclusive isso aparece na primeira frase: “Os curiosos
acontecimentos que são o objeto desta crônica...”. Seria uma descrição
cronológica, quase uma diário, sobre uma doença devastando uma cidade qualquer
nos anos de 1940. A escolhida foi Oran, no litoral da Argélia, cuja localização
geográfica a torna quase uma ilha, por conseguinte, facilmente “isolável” do
resto do país.
O narrador, ou cronista, cuja identidade sem muita surpresa
nos é revelada no final, acompanha as agruras de alguns personagens,
principalmente Bernard Rieux, um médico, que cuida das vítimas, porém sem ter
muito o que fazer, e também reflete sobre a condição humana em meio ao caos
gerado. Tudo começa com ratos que aparecem mortos, para depois começarem a
surgir os primeiros seres humanos atingidos por uma enfermidade praticamente
sem cura.
Há todo o processo parecido com o que estamos passando nos
últimos dias: quarentena, que no romance dura quase um ano, os preços dos
produtos de primeira necessidade vendidos por preços exorbitantes, as reuniões
conflituosas dos políticos, as pessoas que demoram a se dar conta do perigo
(“... as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas desprevenidas”),
as tentativas de fuga da cidade sitiada (um jornalista que casualmente estava
na cidade e queria voltar para Paris) e, claro, muitas mortes, que resultam, em
certo momento, em impossibilidade de enterros dignos.
Quando acompanho os dados em tempo real do crescimento do
coronavírus no mundo e a forma como ele vai se alastrando e chegando perto de
nós, lembro do próprio Rieux, que vê a peste atingindo as pessoas próximas a
ele e só não se contamina devido a um soro cuja eficácia de prevenção se mostra
não tão eficiente em alguns casos.
Se ainda tenho receio, que ainda não chegou ao medo, é
porque tudo ainda parece ficção, algo inimaginável, tendo em vista o que o
homem já alcançou em tecnologia, curas, etc. Sinto-me como Rieux, que responde
a um amigo se acredita em Deus: “─ Não, mas que quer dizer isso? Estou nas
trevas e tento ver claro.” Como acreditar num ser onipotente que permite
desgraças ou que castiga seus filhos por não o adorarem como ele quer? Por
isso, não me venham falar em orar e ter fé. “─ Já que a ordem do mundo é
regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que
lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o
céu, onde ele se cala”.
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