As guerras e o esquecimento
As guerras e o esquecimento
Comprei tempos atrás, num sebo, O livro do riso e do esquecimento, do escritor
tcheco e naturalizado francês Milan Kundera. Havia me esquecido da obra nas
minhas estantes quando resolvi lê-lo antes de entrar no mais recente romance do
autor, A festa da insignificância. Na
página 33, número místico para um cético como eu, encontro esquecido um bilhete
de ônibus datado em 1992. Talvez o antigo dono tenha comprado o livro para
esquecer a distância entre Santiago e Santa Maria, lugares de partida e de
chegada segundo a passagem, que também indicava o horário de saída, meio-dia, a
poltrona em que o passageiro se acomodaria, a 26, e o valor da viagem, Cr$
34.175,00.
Pelo estado do volume, bem conservado, acredito que
o dono se esquecera de lê-lo, absorto, quem sabe, na paisagem, ou então dormira
embalado pelo sacolejar do veículo. E de esquecimento em esquecimento, a obra
chegou às minhas mãos.
É sobre o esquecimento que fala a obra, mas também
do riso. O riso que disfarça o sofrimento que se deseja esquecer. Na verdade, é
uma obra de arte que nos diz para não esquecermos. No caso, não esquecer a
invasão comunista na antiga Tchecoslováquia, que retirou os direitos e a liberdade
dos seus cidadãos, inclusive o próprio Milan Kundera. A arte lembrando que
temos que lutar contra um poder que tenta apagar seu passado e criar um novo
presente, porém um presente indesejado. Como diz uma personagem no primeiro
capítulo, “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o
esquecimento.”
Quando lemos as notícias dos conflitos na Rússia e
na Ucrânia ou em Israel e na Faixa de Gaza, pensamos o quanto o homem esqueceu
o que já aconteceu de ruim na história da humanidade. Quantas mortes,
destruição, abalos morais e físicos que as nações sofreram para atingir
objetivos de poder. Cada vez mais poder. E continuam. Homens que lutam para
obter poder. Gente inocente que morre sem nunca ter pensado no poder. Gente que
é perseguida por lutar contra esse poder. Gente que morre nas mãos de quem tem
poder. Esquecemos tudo isso. Ou não esquecemos, mas continuamos errando.
Voltamos para o antigo dono do livro do Kundera.
Talvez ele não tenha lido o livro no ônibus porque estava pensando na Guerra do
Golfo que acontecia naquele não tão distante ano de 1992. Ou então começara a
ler e as palavras de Kundera desencadearam algo dentro de si, algo que lhe fez
tirar os olhos das páginas e refletir sobre a estupidez humana. É o que faz a
grande literatura, não nos esqueçamos disso.
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