"Como se tornar um escritor cult de forma rápida e simples"
Cena de "Barton Fink", dos irmãos Coen
No caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo de hoje: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1112871-como-se-tornar-um-escritor-cult-de-forma-rapida-e-simples.shtml
RAFAEL GUTIÉRREZ
A série de trechos de livros que a "Ilustríssima" adianta em primeira
mão a abertura do romance de estreia do colombiano Rafael Gutiérrez,
ainda inédito em espanhol, que será lançado no Brasil pela editora
carioca 7Letras.
*
-- Que tal Pablo Domínguez Avelar? -- ela perguntou com algum entusiasmo.
-- Não, comum demais. Tem que ser algo extraordinário, algo que evoque
mistério, uma personalidade oprimida pela angústia, um nome que evoque a
beira de um precipício.
-- Está difícil, disse ela.
Nosso herói, que por enquanto vamos chamar de escritor cult, na falta de
um nome misterioso que evoque a beira de um precipício, fala com sua
mulher na sala de sua casa. Sua história é simples: nasceu em Medellín,
em uma família de classe média, estudou em bons colégios, sua mãe tinha
uma biblioteca aceitável, leu desde bem pequeno e quis ser escritor.
Seus pais, obviamente, se opuseram, ainda que de forma moderada:
persuadiram-no para que estudasse economia ou direito, algo com o que
pudesse viver. "A literatura é bonita, mas como hobby", teria dito sua
mãe. O escritor cult, claro, odiava a palavra hobby e muito mais se
estivesse associada à palavra literatura. Sem nenhuma convicção se
decidiu pelo curso de direito, sabia que vários dos grandes escritores
que admirava haviam estudado direito, lembrou que um grande mestre da
ficção dissera que o melhor treinamento para escrever um romance era
estudar a fundo o Código Penal. Depois de alguns semestres tudo lhe
pareceu mentira, ou pelo menos bastante exagerado, mas seguiu estudando,
porque não queria brigar com seus pais e perder o dinheiro
que lhe davam mensalmente. O escritor cult, como todo escritor que se
preze, detesta trabalhar, então seguiu estudando e foi passando nas
matérias da universidade com notas medíocres, enquanto às noites ele
escrevia e lia e pouco a pouco crescia seu desejo de se tornar um
verdadeiro escritor cult. Mas sabia que não seria fácil. Ser escritor
era fácil, ser um best-seller era fácil, inclusive ser um escritor sério
e reconhecido lhe parecia uma tarefa fácil, mas ser um verdadeiro
escritor cult não o era, aí estava o desafio.
Mas o que é preciso para ser um verdadeiro escritor cult? Várias coisas:
ser completamente inovador, estar contra todas as correntes literárias
do momento, ser hermético para a maioria de seus contemporâneos,
publicar pouco (melhor ainda se toda sua obra
for publicada de maneira póstuma), negar-se a dar entrevistas, usar
sempre pseudônimos e --condição importante, ainda que não estritamente
necessária-- levar uma vida licenciosa, turbulenta, habitar o submundo,
flertar com a morte. O verdadeiro escritor cult é, antes de tudo, um
poeta em todo o sentido da palavra.
Nosso escritor começou sua tarefa de forma sistemática em novembro do
ano de 1993, elaborando um plano minucioso com a ajuda de dois amigos
que nessa época faziam parte da Oficina Literária da Universidade
Autônoma. A primeira parte do plano consistia na elaboração de uma lista
de autores que abarcava o melhor da história da literatura. A lista,
tal como foi elaborada pelo grupo, é a seguinte: Shakespeare, Cervantes,
Montaigne, Milton, Tolstói, Lucrécio, Virgílio, Santo Agostinho, Dante,
Geoffrey Chaucer, o Javista, Platão, São Paulo, Maomé, Samuel Johnson,
James Boswell, Goethe, Freud, Sade, Thomas Mann, Nietzsche, Kierkegaard,
Kafka, Proust, Samuel Beckett, Molière, Henrik Ibsen, Tchekhov, Oscar
Wilde, Luigi Pirandello, John Donne, Alexander Pope, De Quincey,
Jonathan Swift, Jane Austen, Lady Murasaki, Nathaniel Hawthorne, Juan
Rulfo, Herman Melville, Charlotte e Emily Brönte, Virginia Woolf, García
Márquez, Emily Dickinson, Robert Frost, Wallace Stevens, T.S. Elliot,
William Wordsworth, Shelley, Jhon Keats, Leopardi, Lord Tennyson,
Cortázar, Swinburne, Dante y Christina Rossetti, Walter Pater, Hugo von
Hofmannsthal, Victor Hugo, Gérard de Nerval, Poe, Baudelaire, Rimbaud,
Valéry, Homero, Camões, Joyce, Alejo Carpentier, Octavio Paz, Stendhal,
Mark Twain, Faulkner, Flannery O'Connor, Walt Whitman, Fernando Pessoa,
García Lorca, Cernuda, Clarice Lispector, George Eliot, Willa Cather,
Edith Wharton, Scott Fitzgerald, Flaubert, Iris Murdoch, Eça de Queirós,
Machado de Assis, Borges, Italo Calvino, D.H. Lawrence, Tenessee
Williams, Eugenio Montale, Balzac, Lewis Carroll, Henry James, Robert
Browning, William Butler Yeats, Charles Dickens, Dostoiévski, Isaac
Bábel, Paul Celan, Guimarães Rosa, Thomas Pynchon.
Muitos dias com suas noites passou nosso herói estudando as obras,
fazendo comparações, observando as mudanças de estilo, os modos de
narrar, a construção dos personagens, as diversas descrições e as
estratégias usadas pelos escritores na construção da trama. Apaixonou-se
por alguns autores, outros lhe causaram medo, teve que fazer um grande
esforço para ler alguns que lhe entediavam, mas sabia que era um
exercício necessário, sabia que para fazer algo realmente novo tinha que
conhecer a fundo a tradição literária que o precedia.
Seus pais pensavam que ele estava completamente dedicado aos estudos e,
no fundo, ainda que reprovassem de vez em quando suas leituras madrugada
adentro, estavam orgulhosos da dedicação de seu filho. "Será um grande
advogado", pensava sua mãe. "Será um grande político", pensava o pai.
"Será um grande maconheiro", pensava seu irmão, que sempre teve um senso
de realidade e sempre desconfiou das atitudes estranhas do irmão mais
velho.
Tradução de MAURO BRIGEIRO.
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