Dando nome às flores
O escritor Matheus Arcaro me enviou seu primeiro
livro de contos com uma dedicatória provocativa: “que meu jardim de papel possa
emprestar perfume aos minutos que você dedicar à leitura”. Perfume? Como sentir
perfume ao ler histórias tão contundentes, doloridas, violentas, tristes?
Jardim? Só se o jardim estiver morrendo, sem cor, sem flores. Sim, me enganei
com o título, a capa e a dedicatória. Pensei que leria contos delicados e
cheirosos como uma flor. Violeta velha e outras flores
(Editora Patuá, 167 páginas), no entanto, traz uma literatura pesada e cujo
cheiro não é nada agradável. Por isso é um bom livro. Como escreveu Franz
Kafka, “se o livro que lemos não nos desperta com um soco no estômago, para que
lê-lo?”
A epígrafe do volume,
de Nietzsche, foi bem escolhida: “A vida só se justifica como fenômeno
estético”. É da vida que as histórias tratam e com uma elaboração estética
muito bem realizada. A escolha das palavras que mais sugerem situações do que as
revelam, a plasticidade das frases (vale dizer que o autor também é artista
plástico), com uso de aliterações e a constante intertextualidade (bem evidente
no conto “A fúria sem som”, que dialoga com Faulkner) demonstram isso.
Há de se destacar
também a divisão temática que segue uma gradação interessante. Em blocos
delimitados, percebe-se que a primeira parte traz contos em que a infância é a
tônica, principalmente a descoberta do mundo. O pequeno Lucas é apresentado à
dureza da vida, no conto “Casulo rompido”. (“E pela primeira vez Lucas chorou
em silêncio.”) Em “O sonho”, que me remeteu ao poema “O bicho”, de Manuel
Bandeira, o homem pobre “revirando as latas de lixo”, numa “disputa desigual”
com os cães, lembra a infância e os sonhos que sua avó fazia. Aqui é o doce,
claro, mas há por trás a metáfora, na verdade um clichê, do sonho como um
desejo de uma vida melhor.
A segunda parte traz
um conto, “Maquinando”, composto a partir do fluxo de consciência de uma personagem
jovem, entrando no mundo adulto. O terceiro bloco reúne contos de pessoas com
mais idade, principalmente casais que se arrastam em alguma crise. Em “Até que
a morte os separe”, o casal reencena o primeiro encontro numa tentativa de
ressuscitar o relacionamento. “À beira do abismo”, que dialoga com o absurdo
kafkiano, o protagonista acorda numa montanha, com a cama próxima ao
precipício, e reflete sobre o motivo de sua esposa tê-lo deixado: ele não podia
dar filhos a ela. Em “Sentido”, uma carta de separação: “Vai e me deixa com
meus livros incompletos e meu mundo sem parapeitos.”
O quarto bloco trata
de perdas: o palhaço que perde sua alegria, o advogado que perde a visão, o
escritor regrado que perde a rotina. A quinta parte possui os contos mais
dilacerantes. É no conto “Violeta velha” que ficamos sabendo o real significado
do título e o revelo aqui, como mais uma prova do peso dos contos: nada de flor
de verdade, mas sim a “mancha arroxeada que abraçava o olho esquerdo” do filho
drogado que batia no próprio pai. Quer mais? Temos “Alice”, que cai na toca do
país da cocaína, da heroína e do crack. Temos a Conceição, uma intelectual que
busca “A cura” em um centro espírita a pedido da filha. Temos um velho no asilo
(ou “Casa de Repouso, eufemismo rasteiro para seus ouvidos de poeta. Talvez
Antecâmara do Cemitério ou Estoque de Cadáveres Teimosos (...).”) esperando “A
visita” dos filhos que não vêm. Temos “A festa” de aniversário de uma jovem no
hospital com o rosto roxo (roxo, lilás, violeta, são cores que permeiam todas
as histórias) e que perdeu a voz depois de um terrível acidente. O melhor conto
da coletânea, pela técnica narrativa.
O derradeiro bloco
traz a morte, porém de forma cômica no primeiro conto, “Está tudo escrito”.
Arcaro faz o personagem Arthur, assim como Dante, percorrer o inferno, o
purgatório e o céu para escolher onde vai ficar, mas é enganado pela propaganda
do diabo (sim, já ouvimos isso em alguma piada). O conto é até interessante,
mas o tom de humor destoou de todo o livro. A leveza talvez desejada pelo autor
para amenizar o peso anterior não surtiu um bom efeito. Caberia muito bem num
livro de crônicas. Já o conto “Dois homens mortais”, um necrológio de um
cientista cético que estudou o sudário que teria envolvido Jesus Cristo, retoma
a qualidade perdida.
Chama a atenção que,
em quase todos os contos, Matheus Arcaro dá nome a seus personagens, coisa rara
hoje em dia, pois os contistas contemporâneos preferem narrar a vida de
anônimos, como se dissessem “isso acontece com qualquer um de nós”. Ao
nomeá-los, o escritor cria um mundo todo seu. É um nome a se guardar.
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