Traçando livros de hoje é sobre poemas de Marco Cremasco
Vida, tempo, palavras
Ao chegar a casa por
esses dias, depois de buscar minha esposa no trabalho, me deparei com uma
formiga no para-brisa do carro. Carregava uma enorme folha. Provavelmente,
havia caído de alguma árvore, parecia tonta. Perdeu-se, portanto, das demais
companheiras. Levei-a até o chão e ela soltou seu fardo. Fiquei observando-a se
embrenhar na grama, sentindo-se perdida. Para onde iria agora?
Como não sou poeta,
no máximo um cronista, às vezes faço dessas pequenas coisas matéria para algum
texto que, porém, nem sempre consegue captar com sucesso momentos tão singelos.
Já o paranaense Marco Aurélio Cremasco,
poeta dos bons, também contista e romancista, bebe na fonte de Manoel de Barros
e Alberto Caeiro (um dos heterônimos de Fernando Pessoa), citado inclusive em
um dos poemas, para nos trazer, em As coisas de João Flores, numa belíssima
edição de capa dura da Editora Patuá, a grandeza dessas miudezas.
Uma formiga aparece
no poema em que “a folha órfã/cai espiralada”, sugerindo a pausa da “procissão”
dos “súditos” da “rainha”. Logo me veio a lembrança o pequeno inseto perdido. No
poema de apresentação, o eu-lírico dá bom dia a “cães gatos/rato pássaros”,
menciona flores e borboletas, elementos da natureza que contrastam em outros
poemas com o mundo da cidade, na dicotomia que vive João Flores, “meio urbano
meio caipira (...)/fora de moda, pois a moda não é violeta, é de viola”. João
Flores, diga-se, era personagem de um conto de Cremasco, presente em História prováveis, de 2007, cujo trecho
serve de epígrafe para o livro de poemas, em que se pode ler que ele “trazia a
vida em um saco de coisas”.
O tempo e a morte
também são temas constantes: versos como “a morte espreita/atrás da porta” ou “a
vida nada mais é o que um sonho da morte” sugerem um João Flores no fim da vida
(“vejo o tempo corroer-nos”), vivendo uma jornada interior (“existe um
deserto/para atravessar//um deserto/sem fim//este deserto/dentro de mim”). Assim
como a formiga que carrega a folha, o eu-lírico carrega sua pedra como o Sísifo
da mitologia. No poema “Rock’n’roll, o pai aconselha ao filho: “vá com
sísifo/role pedras”. É um peso do qual o homem não deve fugir. A vida passa, o
tempo passa. As dificuldades, porém, voltam: “a luz (se) revela/intervalo das
trevas”.
Há versos em que a
palavra e o poema são destacados: “palavras comuns/poemas qualquer”, “liberdade é uma palavra encarcerada/que
deve ser lida repetida apreendida”, “quero escrever um poema/o poema que não
quer ser escrito”, “engravido de outro poema”, “o poema não é... caso
desfeito”, “não sou apenas palavra, sou pensamento”. O poeta, como Drummond, luta com as palavras,
mas também contra a morte e o tempo. Marco Aurélio Cremasco, que além de
escritor é professor de engenheira química, conhece a fórmula de um bom poema.
Cassionei Niches
Petry é escritor. Autor de Arranhões
e outras feridas (Editora Multifoco) e Os óculos de Paula (Editora Autoral). Escreve regularmente para o
Mix e mantém um blog, cassionei.blogspot.com.
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