Das leituras da quarentena: o abalo sísmico de Luiz Vilela



Estamos passando por um tremor de terra, metaforicamente falando, é claro. Estão ruindo as certezas, desabando as ideologias, sendo soterrada a arrogância e morrendo a esperança (que em mim, particularmente, morreu há muito tempo). Enquanto isso vou lendo, refletindo, escrevendo, elaborando aulas a distância, atendendo alunos e também estudando. Das minhas tantas leituras e releituras, reencontrei justamente os contos de “Tremor de terra”, livro de estreia de Luiz Vilela, lançado em 1967, às próprias custas. Tenho um exemplar antigo, da Editora Ática, mas recentemente foi reeditado pela Record. É um dos mestres que temos, um pouco esquecido por não estar nas redes sociais.

Da geração prolífica do conto que nos proporcionou obras-primas entre os anos 60 e 70, Vilela chegou com tudo, arrebatando prêmios e elogios da crítica. Não há peça irregular no seu tabuleiro. As diferentes formas de narrar e as temáticas mostram um escritor preocupado não apenas em o que contar, mas como contar. O primeiro relato, “Confissão”, é formado apenas por um curto diálogo entre um padre e o menino, sendo que o religioso conduz o jovem a descrever com todos os detalhes o objeto de seu pecado, uma vizinha que viu sem roupa, e pergunta, como quem não quer nada, se ela fica sozinha frequentemente. Essa crítica sutil a uma religiosidade hipócrita aparece também em “Espetáculo de fé”.

Luiz Vilela também experimenta, em contos como “Júri” e o magistral “Deus sabe o que faz”, narrativas sem ponto entre as frases, em monólogo indireto, por estarem na 3ª pessoa, provando seu repertório técnico variado.

A predominância de temas ligados ao cotidiano em termos realistas é notória, principalmente nas relações humanas conflituosas, como a do casal e suas dificuldades financeiras em “Por toda a vida”, ou a do marido insensível aos agrados da mulher em “Nosso dia”. A solidão é outra constante, o que é o caso de “Chuva”, em que um homem solitário encontra num cão, que apenas quer um abrigo para não se molhar, um companheiro para ouvir sua voz ou seu silêncio: “Estava com vontade de falar e o cão era um bom ouvinte: não fazia perguntas nem pedia para continuar quando se interrompia”.

Há humor em momentos inusitados, como em “Velório”, em que um grupo de amigos passa a noite velando o morto cujo caixão, que tinha que ser sob medida devido ao seu tamanho, não havia ficado pronto, empurrando o enterro para o dia seguinte. Ou em “O fantasma”, em que o espectro que assombrava uma casa encontra um homem que não tem medo dele e ainda o convida para sentar e conversar.

O melhor conto é “Buraco”, em que Luiz Vilela flerta com o realismo fantástico e dialoga com Kafka. Trata-se de um jovem recluso que cava um buraco e aos poucos vai se metamorfoseando num tatu, para a tristeza de sua mãe e da namorada: “Mamãe foi se consolando com o fato de saber que eu ainda estava vivo, e Maria, por razões que depois vim a saber, foi deixando de vir”.

Há ainda outros belos contos, como o que dá título ao livro, e que fala de um amor desesperado de um aluno adolescente por sua professora, imaginando um momento único em que estivesse com ela, que ele compararia com um tremor de terra: “É o que desde criança espero, um tremor de terra, algo que abalasse, que tremesse, que sacudisse tudo”.

Luiz Vilela conseguiu isso: abalou as estruturas da Literatura Brasileira.

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