Meu ensaio sobre romance de Paul Auster no Caderno de Sábado


Escrevi para o Caderno de Sábado do Correio do Povo, de Porto Alegre, um curto ensaio sobre "O país das últimas coisas", do Paul Auster, e o texto está na capa do suplemento.


Doce pessimismo para tomar sábias decisões
Título original: Sejamos pessimistas (docemente pessimistas)

Em meio à pandemia do novo coronavírus, muitas obras literárias são mencionadas nos cadernos culturais dos jornais, como este Caderno de Sábado do Correio do Povo, ou páginas na internet. Há aquelas que falam especificamente de pestes, como o clássico A peste, de Albert Camus, cujas vendas cresceram no mundo todo, ou as que retratam a Terra vivendo num mundo pós-apocalíptico, como A estrada, de Cormac McCarthy. Nesse último grupo podemos incluir um romance um pouco esquecido do escritor norte-americano Paul Auster, O país das últimas coisas, que merecia um nova edição no Brasil. A mais recente é de 2000, da editora Best Seller, com tradução de Luiz Araújo.

O livro me veio à lembrança depois de ver as imagens de corpos insepultos e caixões deixados nas ruas do Equador, gente morta devido ao Covid-19, além de vivermos numa quarentena, gerando desemprego, gente sem dinheiro, profissionais liberais, muitos informais, sem poder trabalhar, as ruas e praças desertas. No romance de Auster, publicado originalmente em 1987, a narradora é Anna Blume (o nome é uma referência a um poema do artista plástico alemão Kurt Schwitters), uma jovem que escreve uma enorme carta para um amigo, narrando sua ida a uma cidade isolada, aonde chega de barco, com o objetivo de encontrar seu irmão, jornalista que havia sido enviado à cidade para realizar uma série de reportagens, porém nunca mais voltou e não enviou nenhum sinal de vida. Ela não o encontra, no entanto é obrigada a ficar, não pode mais sair do lugar que parece estar num clima pós-apocalíptico, não havendo uma explicação sobre o que ocorreu exatamente, guerra, peste ou desastre natural.

A comida (a fome é um tema constante na obra de Paul Auster, tanto a fome de comida como a fome da escrita) e os bens de consumo são escassos, a maioria da população precisa trabalhar catando lixo, tendo em vista que não se produz mais nada na cidade, tudo precisa ser reutilizado. A própria Anna acaba coletando peças para vender, usando um carrinho de supermercado que precisa, para não ser roubado, ficar amarrado no corpo com uma corrente que os catadores denominam de cordão umbilical: “Por causa do ruído produzido pelas correntes quando o carrinho passa aos solavancos pela rua, os lixeiros são frequentemente chamados de ‘músicos’”.

Quanto às casas, decrépitas, muitas são invadidas e seus moradores jogados para fora. Não há propriedade, praticamente. Muitos vivem em antigos prédios públicos, como os intelectuais que moram em uma biblioteca praticamente abandonada. São apenas “tolerados” pelo governo, sem trabalho algum dentro de suas habilidades. Por suposto, pensar também não é muito bem visto nesse lugar.

Quando alguém morre, os corpos têm que ser abandonados (“há cadáveres em toda a parte: na calçada, às portas e até no meio da rua”) para serem recolhidos (“Todas as manhãs, a cidade manda caminhões recolher os corpos”) e queimados em crematórios, chamados de Centros de Transformação, para servirem de combustível. Nada pode ser desperdiçado. Por isso, os enterros são proibidos, gerando severas punições, caso as famílias tentem enterrar seus parentes:

“— O enterro, em nossa época, é um ato de egoísmo: imaginem o quanto prejudica. Sem corpos para queimar, seríamos rapidamente liquidados, é claro, naufragaríamos todos. De onde viria o combustível? Como poderíamos viver? Nesta época de emergência nacional, temos de estar vigilantes. Nenhum corpo pode ser poupado, e os que se atrevem a subverter a lei não podem ficar em liberdade. São facínoras da pior espécie, traiçoeiros malfeitores, escória de renegados. Devem ser punidos, extirpados!”

 Muitas pessoas decidem cometer suicídio. Uma seita de corredores, por exemplo, se suicida de uma forma inusitada: “Trata-se de correr o mais depressa possível, cansar-se até que o coração já não aguente”. Outra forma escolhida é se atirar do alto dos prédios, uma vez que o corpo já fica na calçada e vai ser recolhido pelos caminhões da prefeitura. Torna-se um espetáculo, pois todos vão assistir ao chamado Último Salto:

“É como se a violência e a beleza do espetáculo as tivesse arrebatado de si mesmas, fazendo-as esquecer a mesquinhez de sua própria existência. O Último Salto é algo que qualquer um pode compreender e corresponde aos íntimos anseios de todos: morrer subitamente, obliterar-se num breve e glorioso momento. Às vezes, acho que esta é a morte que corresponde à nossa sensibilidade: nossa forma de arte, a única maneira de nos expressarmos.”

É marcante a cena em que Anna e Isabel, a mulher que a acolheu em sua casa e cujo marido morre de doença, levam o corpo dele ao alto do edifício em que moram para ser empurrado e, assim, simular o suicídio, uma tentativa de preservar a memória do falecido, pois “haveriam de dizer que aquele era um homem com coragem de resolver seus problemas por si só”. Na verdade, porém, o sujeito era um covarde, acomodado, aproveitador e ainda abusou de Anna.

Mais não digo, para não estragar as surpresas do leitor. Muita coisa ainda acontece no romance, tudo num plano distópico que me remete ao aforismo de Kafka: “Há esperança suficiente, esperança infinita ─ mas não para nós". É um romance perturbador, pessimista, foi escrito para chocar mesmo, mas é uma ficção, embora pareça não estar muito longe da realidade. Não me surpreenderia se o mundo caminhasse nesse sentido devido ao alcance do vírus e sua rápida disseminação. É duro pensar dessa maneira, mas é preciso, e a ficção muitas vezes nos faz isso, tirar nossas esperanças, para assim refletirmos melhor e tomar sábias decisões. Sejamos pessimistas (docemente pessimistas), parodiando Drummond. O pessimismo pode trazer a esperança.

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