No meio do caminho tinha um vírus


Minha coluna no Jornal Arauto deste fim de semana:

Carlos Drummond de Andrade foi o maior poeta do país. Isso é quase uma unanimidade e ainda bem que seja quase. Nelson Rodrigues, nosso maior dramaturgo, escreveu em uma de suas crônicas: “não sou um escritor unânime, porque a unanimidade é uma burrice”. Da vasta obra poética drummondiana (ele também foi um excelente cronista), meu livro preferido é “Sentimento do mundo”, de 1940, cuja edição mais recente é da Companhia das Letras.

Pode-se dizer que Drummond é daqueles poetas proféticos. Sempre encontramos algum verso que fala sobre “o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente”, como escreveu em “Mãos dadas”, poema desse mesmo livro, em que ironicamente diz que não será “o poeta de um mundo caduco”. Mas foi e continua sendo esse poeta. É também desse volume, por exemplo, “Elegia 1938”, cujos versos foram relembrados na época do atentado ao World Trade Center, no fatídico 11 de setembro de 2011: “Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição / porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.” Já um poema dos anos 80, “Lira itabirana”, publicado apenas em jornal, foi resgatado depois da tragédia na barragem de Brumadinho: “O Rio? É doce. / A Vale? Amarga. / Ai, antes fosse / Mais leve a carga. / Entre estatais / E multinacionais, / Quantos ais! / A dívida interna. / A dívida externa / A dívida eterna. / Quantas toneladas exportamos / De ferro? / Quantas lágrimas disfarçamos / Sem berro?”

O poeta era de Itabira, cidade de Minas Gerais, onde também há barragens e extração de ferro. Em “Sentimento do mundo”, temos sua “Confidência de itabirano”, em que evoca o “ferro nas calçadas” e o “ferro nas almas” de sua população, sendo que o próprio eu lírico diz ser “triste, orgulhoso: de ferro”. Drummond, no entanto, parte de sua aldeia para o mundo (“Itabira é apenas uma fotografia na parede”), que na época entrava na Segunda Grande Guerra, mostrando-se angustiado com as transformações de ordem política e o que elas afetam no indivíduo e nas relações humanas: “Os camaradas não disseram / que havia uma guerra / e era necessário / trazer fogo e alimento. / Sinto-me disperso”.

Como seus versos são atemporais, é inevitável lê-lo pensando na pandemia que estamos vivenciando, o que traz mais uma vez à baila o seu caráter profético. Em “Congresso internacional do medo”, lemos aquilo que talvez mais nos afete atualmente, ao não poder, por precaução, nos aproximar das pessoas queridas devido ao vírus: “Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços”. Assim como vemos nossas “lideranças” perdidas, afirmando aquilo que pode nos levar a um destino que tememos: “cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, / cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte”. E o que dizer sobre aqueles que não querem ficar em casa, Drummond? “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem”, escreve em “Os ombros suportam o mundo”.

No seu primeiro livro, “Alguma poesia”, de 1930, Drummond escreveu que “no meio do caminho tinha um pedra”. Hoje, no meio do nosso caminho existe um vírus. Sempre houve pedras e vírus no nosso caminho (“Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos”), sempre houve gente incapaz que nos lidera, sempre vivemos tempos ruins. No entanto, sempre o mundo sobreviveu. Ou não? Às vezes, Drummond é pessimista: “O mundo não tem remédio… / Os suicidas tinham razão”. Em outros versos, porém, dá um pouquinho de esperança nesse isolamento social: “Neste terraço mediocremente confortável, / bebemos cerveja e olhamos o mar. / Sabemos que nada nos acontecerá. / O edifício é sólido e o mundo também”.

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