Vastas sensações sobre um gênio imperfeito



“Ele fechou os olhos e cobriu-os com as duas mãos. Disse: “putaquepariu”, ainda com as mãos no rosto. Abriu a boca como se estivesse com falta de ar. Isso por poucos segundos. Logo em seguida descobriu o rosto, olhou para os lados para ver se alguém o observava e compôs sua fisionomia.” Assim termina o conto “Duzentos e vinte e cinco gramas”, de “Os prisioneiros”, primeiro livro de contos de Rubem Fonseca. No enredo, o personagem havia saído do IML depois de acompanhar a autópsia de uma amiga. É com a mesma sensação do personagem que nós leitores saímos depois de ler os contos e os romance do escritor que morreu nesta quarta-feira, a um mês de completar 95 anos de idade.

Incômodos, náuseas, indignação, angústia. O Rubão da melhor fase, entre os anos 60 e 90, nos fazia passar por tudo isso. Como se diz, tinha que ter estômago forte para lê-lo. Não dava para se sentir bem depois de ler que os bandidos de “Feliz Ano Novo”, do livro homônimo censurado pela ditadura, apostavam para ver quem conseguia grudar a vítima na parede com um tiro. Muito menos consegui dormir direito depois de ler “Passeio noturno – parte 1”, em que um empresário atropela as pessoas na rua com seu carro importado para relaxar depois de um dia extenuante: “Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto.”

Além dessas histórias em que a violência é a tônica, Rubem Fonseca também enriqueceu sua obra com referências literárias e culturais, dando verdadeiras aulas de erudição em meio a um ambiente de relações humanas conflituosas, inclusive nos títulos que remetem à literatura e ao cinema, como “E no meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto”, versos de Álvares de Azevedo que nomeia uma de suas últimas grandes obras, de 1997, quando já dava os sinais de desgaste, que resultou em obras menores no final da carreira, quando as referências eruditas passaram a ser exageradas, a ponto de virarem praticamente citações parecidas com as da Wikipédia. Nem todo gênio é perfeito.

O legado, porém, é muito positivo. Pode-se dizer que há uma literatura brasileira antes de Rubem Fonseca e outra depois de Rubem Fonseca. Ele influenciou de escritores populares aos mais, digamos, acadêmicos. Foi muito lido no exterior, a ponto de ter traduções de seus contos completos. Virou até personagem de um romance de Roberto Bolaño, o que, dizem, foi um dos motivos da saída dele da Companhia das Letras. Sua obra vinha sendo editada, recentemente, pela Nova Fronteira.

O romancista e contista Deonísio da Silva, um dos primeiros especialistas na obra do escritor, afirmou que “Rubem Fonseca submete os temas de sua preferência a sofisticadas variações a cada novo livro”. De romances policiais, como “A grande arte”, com o mais importante personagem fonsequiano, Mandrake, presente em outras obras, passando pela ficção histórica em “Agosto”, sobre os bastidores do fim da vida de Getúlio Vargas, sem esquecer a metaliteratura em “Bufo & Spallanzani”, que tem o meu personagem preferido, o Gustavo Flávio, chegando ao “Diário de um fescenino”, e mais ainda as diversas técnicas utilizadas nos seus contos, só comprovam que Rubem Fonseca foi e será um grande nome da nossa literatura. Que sua morte seja um motivo para reler sua grande fase, sua grande arte.  

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