No Traçando Livros de hoje, Firmin, de Sam Savage


No Traçando Livros de hoje, no jornal Gazeta do Sul, escrevo sobre o romance Firmin, de Sam Savage: http://www.gaz.com.br/gazetadosul/noticia/352777-descobertas_de_um_rato_de_livraria/edicao:2012-06-20.html

Descobertas de um rato de livraria

Quando estudava no Curso de Letras, a pasta que eu utilizava para carregar meu material tinha estampado um desenho de um rato. Certa vez, sonhei que esse roedor ganhara vida e saíra percorrendo as prateleiras da Biblioteca da Unisc devorando todos os volumes. A clássica expressão rato de biblioteca ou de livraria só rivaliza com a da traça, igualmente apreciadora de livros, e que motiva o título desta página quinzenal. Inspirado nesse animal odiado por muitos, o escritor americano Sam Savage escreveu uma pequena obra-prima sobre a paixão pela literatura e pelo conhecimento.

Firmin, romance publicado no Brasil pela editora Planeta (mas o li na tradução em espanhol da Seix Barral), é o nome do rato que, de tanto roer as páginas dos livros de uma velha livraria, acaba incrivelmente aprendendo a ler e desenvolve uma inteligência igualmente incomum. Tudo é narrado por ele próprio, que afirma: “Estou convencido de que estas páginas mastigadas contribuíram para a base nutricional do que modestamente denominarei meu insólito desenvolvimento mental”. 

Iniciando pelo seu nascimento, num ninho feito pela sua mãe com folhas de um romance de Charles Dickens, a história prossegue através das peripécias do roedor para tentar comer e depois ler o máximo possível de livros. Num primeiro momento, os devora de forma desordenada. Depois, porém, passa a refinar o gosto: “Me dei conta, em princípio, de que cada livro possuía um sabor distinto – doce, amargo, azedo, agridoce, rançoso, salgado, picante –, e conforme foi passando o tempo e meus sentidos ganhavam em perspicácia, cheguei a captar o sabor de cada página, de cada frase, e finalmente de cada palavra.” Por último, passa a mastigar apenas as margens e a ler o conteúdo das páginas, numa obsessão a que denominou de “bibliobulimia”.

Devido a seu desenvolvimento intelectual, Firmin tenta se comunicar com Norman, o dono da “Livros Pembroke”, em cujo depósito o rato nasceu. (“Não suportava a ideia de passar o resto dos meus dias em silêncio”.) Não conseguindo usar a enorme máquina de escrever, tenta a linguagem de sinais, mas ambas as tentativas são frustradas. Quase morre ingerindo veneno, se salvando porque consegue ler o rótulo da embalagem do que pensava ser uma refeição oferecida por Norman. Andando pela cidade, busca se comunicar com duas deficientes auditivas, mas acaba sendo perseguido e, ao tentar fugir, sofre uma fratura na perna. É acolhido pelo escritor de ficção científica Jerry Magoon, que morava no mesmo prédio da livraria. Mais não digo para não estragar algumas surpresas.

Alegoria sobre a condição humana, a obra nos provoca a refletir sobre nossa condição de ratos enfrentando um mundo perverso. A literatura nos faz descobrir quem somos, é como olha na pequena abertura no teto onde Firmin observava a livraria quando estava no sótão: “Era uma janela para o mundo dos humanos, minha primeira janela. Nesse sentido, vinha o ser o mesmo que um livro: por ela poderia aparecer mundos que não eram os meus”.

 Sam Savage, nascido em 1940, é Doutor em Filosofia, e só aos 65 anos publicou seu primeiro livro. Ainda bem desconhecido, em que pese Firmin, publicado originalmente em 2006, ter se tornado um best-seller em muitos países, é um escritor que merece ser descoberto por quem vê na literatura uma paixão. Outra obra sua publicada no Brasil é o romance Cartas de um escritor solitário, em que, assim como em Firmin, também explora a metaliteratura. 

Cassionei Niches Petry é mestrando em Letras, com bolsa do CNPq. Já foi um rato de biblioteca. Hoje se considera uma traça, mais insignificante ainda. Escreve regularmente para o Mix e mantém o blog cassionei.blogspot.com.

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