Das leituras de quarentena: “O tenente Gustl”
Queria ler hoje de manhã “O tenente Gustl”, novela de Arthur Schnitzler, publicada em 1901, e jurava que
eu a tinha na minha biblioteca. Vou à prateleira da literatura de língua alemã
e não a encontro. Revira daqui, revira dali e nada. E olha que tenho (para meu
desgosto) poucos livros. Mas lá no subconsciente, eu sabia que tinha esse livro
do escritor vienense amigo de Freud, que inclusive o considerava o seu duplo e estou
justamente começando a ler toda a obra do pai da psicanálise. Sei também que
não havia vendido o exemplar para nenhum sebo. Era a única narrativa do Arthur
Schnitzler que eu tinha certeza de ter aqui na minha toca, apesar de seu
tradutor, Marcelo Backes, ter me dito que era só pedir alguns livros traduzidos
por ele que me daria. Meio sem jeito, como sempre, pedi somente um romance da
escritora alemã Juli Zeh, “Corpus delicti: um processo”, para escrever uma
resenha, mas isso já faz um bom par de anos. Backes, diga-se, havia traduzido
dela um dos maiores romances contemporâneos, ainda que não reconhecido, “A
menina sem qualidades”.
Nem Freud explicaria meu desejo de
ler a novela exatamente hoje. Pode ter relação com o romance que estou
escrevendo? Vai saber. Também estou assistindo à série ficcional “Freud”, na
Netflix. Isso pode explicar. Era tal a minha obsessão pela leitura, que estava
apelando até por baixar um e-book pirateado, mas o encontrei somente em
espanhol. Vá lá, estou sempre lendo em espanhol, minha segunda língua, da qual
sou um mediano professor. Eis que o olho bate na lombada de um exemplar na
prateleira de antologias, “Contos alemães”, seleção e tradução de Aurélio
Buarque de Hollanda (sim, o do dicionário, meus alunos) e Paulo Rónai (sobre o
qual assisti ainda ontem a um documentário no site do Canal Arte 1, retratando
não somente sua trajetória, mas também as de Herbert Caro e Otto Maria Carpeaux).
Abro o índice e está lá a narrativa, classificada como conto, o que não é de se
estranhar, pela extensão, já que na antologia, letra pequena porque é uma
edição de bolso, são 27 páginas apenas. É a velha discussão sobre romance,
novela, conto.
A narrativa é curta na sua
extensão (foi escrita em quatro dias) e também é rápida de se ler, mas, como o
próprio Schnitzler escreveu em outro momento, a “vida está na
intensidade, não no tempo”. Inaugurou na língua alemã o que chamamos de fluxo
de consciência ou monólogo interior. Para “O tenente Gustl”, fluxo de consciência seria o termo
mais apropriado, pois há reprodução de alguns diálogos, no entanto Schnitzler denominava de “monólogo de pensamentos”. Justamente, o enredo nos é contado a
partir dos pensamentos do protagonista, cujo nome dá título à obra, iniciando
quando ele está num concerto, que julga cansativo (“Tenho a impressão de estar
sentado aqui há três horas”). Na saída, esbarra num homem gordo que atrapalhava
sua entrada no vestiário onde guardou o casaco, e reconhece no homem o padeiro
que frequentava o mesmo café onde o tenente costumava lanchar. Os dois têm uma
pequena discussão, o outro ameaça quebrar sua espada, o jovem tenente considera
isso um insulto, vindo de alguém de uma classe inferior, mas não revida para
evitar um escândalo, torcendo para que ninguém tenha testemunhado a ofensa.
Enquanto
perambula pela rua, fica remoendo sua covardia e pensa em cometer suicídio, envergonhado
pelo que aconteceu, já que não pode chamar o sujeito para um duelo, pois este é
um civil. Decide se matar na manhã seguinte, às 7 da manhã. Nesse meio tempo,
vai refletindo sobre sua família, as mulheres, o exército, dorme no banco da
praça, vai a uma igreja, se encanta com o som do órgão e volta e meia vem a sua
mente o fato vexatório pelo qual passou, com medo de que chegue ao conhecimento
de outras pessoas.
O medo
persegue o tenente, inclusive o medo da morte: “seja sincero consigo mesmo:
você tem medo porque nunca experimentou a coisa... Mas tudo isso não lhe
servirá de nada, o medo até hoje não ajudou ninguém... cada um tem que passar
por isto, um mais cedo, outro mais tarde, e você é dos que vão mais cedo, ponto
final... Você nunca foi grande coisa, mas pelo menos a última vez comporte-se
direito! (...) o troço está na gaveta do criado-mudo, está carregado, é só
puxar o gatilho – não é nenhum bicho-de-sete-cabeças!”
O desfecho
é levemente surpreendente, como leve é a narrativa, em que pese a todo o tempo
o personagem pensar em se matar. Deixo para você, leitor, de quem espero o
interesse por conhecer a obra, avaliar seu final. Depois me conte o que achou.
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