Sanatório geral
Não é questão de se contar uma boa história, mas de como
contá-la. Mesmo um contador de histórias nato como o Érico Veríssimo se
arriscava em técnicas como a do contraponto em suas obras. O espanhol Luis
Goytisolo, ao contar histórias dos habitantes dos arredores de Barcelona, no
seu primeiro romance, “Las afueras”, o fez em forma de contos em que os nomes
dos personagens se repetem, porém não são os mesmos, e chamou esses relatos de
romance, embora a desconexão entre os protagonistas. Literatura, como arte, é
isso. É arriscar-se, é experimentar. Ainda mais hoje, em que as novelas da TV
ou as séries e filmes do streaming já
satisfazem aqueles que querem apenas apreciar uma boa história. A Literatura
precisa ir além, caso contrário pode não ser Literatura e, sim, apenas uma
história no papel, e não na tela. Mesmo que seja uma história bem contada.
Chico Buarque faz Literatura. Se quisesse apenas contar
histórias, já teríamos suas músicas, narrativas urbanas com expressividade
artística, claro. Ele quis, no entanto, ir além e produziu peças literárias de
alto teor estético com seus romances. Em “Essa gente”, o mais recente (Companhia
das Letras, 200 páginas), o como escrever se destaca. Um suposto diário sem
ordem cronológica, cartas (sim, cartas), e-mails, documentos, trechos de
decisões judiciais, ligações telefônicas e narração de sonhos são fragmentos
que o escritor deixa para leitor montar e assim ler sobre um escritor entrando
em decadência e em conflito com suas ex-mulheres (com uma delas tem um filho problemático)
e os moradores do prédio de onde está prestes a ser despejado, devendo um romance
para seu editor e vivendo neste país conturbado, um “sanatório geral” que havia
recém-eleito um porra-louca, um país de porras-loucas, o próprio escritor sendo
um porra-louca. “Será que ainda teremos nossa correspondência violada? Será que
ainda incendiarão os nossos livros?”, diz sua ex-mulher, uma intelectual, em uma
das cartas reproduzidas.
Há ainda uma história narrada nos diários que poderia ser um
dos romances do escritor, Manuel Duarte. Trata-se do relato de um jovem negro,
Everaldo Canindé, que o protagonista conhece na visita a um casal de amigos na
favela, uma estrela local no canto lírico, que tem suas genitálias mutiladas
por um pastor da igreja a pedido de um maestro pedófilo, patrão de sua mãe, com
o intuito de manter sua voz angelical, como os antigos “castrati”. Alvo de risos pelos apreciadores de sua arte (na
verdade ricaços apreciando alta cultura como status social) devido ao corpo
gordo e à voz fina, o personagem é um dos representam a questão da
descriminação racial que perpassa a narrativa, envolvendo, inclusive, o próprio
protagonista. Essa história, porém, não se desenvolve, servindo talvez mais
como metáfora do próprio escritor, castrado de suas ideias.
Ainda se discute muito a qualidade literária de Chico
Buarque, como se ele fosse um Paulo Coelho, bom nas letras de música, mas
péssimo na Literatura. Chico, porém, é cuidadoso na escrita, original nos enredos
e não cai nos chavões otimistas do “mago”. Vale destacar que nem tenta repetir,
no romance, o lirismo de suas canções. Há um tom pessimista, misturado a um
humor ácido e crítico, bebido pelo leitor Chico na mais alta Literatura. Contrariando
alguns críticos e repetindo o que escrevi em resenha sobre outra obra domúsico, “meu caro amigo, me perdoe, por favor”, mas Chico Buarque é um grande
escritor.
Texto publicado também no BarDoPoeta:
https://bardopoeta.com/ensaio/critica-literaria-cassionei-niches-petry-sanatorio-geral/
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