Mais sobre escrever...
L. F. VERISSIMO publicou hoje na Zero Hora, Estadão e outros jornais este texto. Seria um aviso para mim também?
Ele se apresentou como escritor. Antes que eu pudesse perguntar o que já tinha publicado, acrescentou:
– Inédito.
Escrevera um romance, mas ainda não o publicara. Lera num artigo que os livros precisam de um “tempo de gaveta”. Antes de publicar o livro, o autor deveria colocá-lo numa gaveta e esperar. Depois de um certo tempo, poderia ler o livro com distanciamento crítico e só então decidir se ele merecia ou não ser publicado. Depois de um certo tempo, afirmava o artigo, o livro seria outro.
– E foi o que você fez?
– Foi. Escrevi um romance curto, meio autobiográfico como a maioria dos primeiros romances. Achei que ele estava bom, pronto para ser editado. Mas hesitei. Talvez fosse melhor esperar para ler o livro mais tarde, com frieza, e só então decidir editá-lo. Ou não.
– E você botou o livro numa gaveta.
– Botei.
– Por quanto tempo?
– Quase dois anos.
– Dois anos? E durante todo esse tempo não teve vontade de pelo menos espiá-lo?
– Tive, mas resisti. Finalmente, abri a gaveta e tirei o manuscrito. Já estranhei o peso. Meu pequeno romance aumentara de tamanho. Comecei a ler e não reconheci o que tinha escrito. Em vez da minha cidade e das minhas experiências como adolescente, a história se passava na Rússia czarista. Procurei em vão pelas cenas da minha iniciação sexual com a babá do vizinho e não encontrei. Mas encontrei o Napoleão Bonaparte!
– O seu livro se transformara em...
– Guerra e Paz, pois é. Ou coisa parecida. Pensei que tivesse enlouquecido. Fechei a gaveta e passei mais dois anos sem abri-la. Com medo de que aquele meu delírio fosse verdade e eu estivesse mesmo louco. Até que um dia...
– Você abriu a gaveta de novo...
– Não, a gaveta se abriu sozinha. O tamanho do manuscrito forçara a gaveta a se abrir. Meu nome continuava na primeira folha, mas o resto do manuscrito, que daria uns seis volumes, era de reminiscências de um francês... Um romance meio autobiográfico, como o meu, mas a semelhança terminava aí.
– Proust?
– Proust. Botei este manuscrito numa gaveta maior. Esperei mais um ano. De vez em quando dava uma espiada, para ver no que meu pequeno romance estava se transformando desta vez. Um dia, criei coragem, abri a gaveta e peguei a primeira folha para ler. Começava assim: “No princípio Deus criou os céus e a Terra...”
– A Bíblia!
– E com minha assinatura. Fechei a gaveta imediatamente. Passei meses sem abri-la. E então, anteontem, decidi. Abri a gaveta, disposto a acabar com aquela brincadeira. Eu não era um louco. Aquilo não podia estar acontecendo. Abri a gaveta e encontrei...
– O quê?
– Meu romance. Meu pequeno romance, como eu o havia deixado tantos anos antes.
– E você vai finalmente publicá-lo?
– Não sei...
– Por quê?
– Acho que as gavetas estavam querendo me dizer alguma coisa...
Tempo de gaveta
Ele se apresentou como escritor. Antes que eu pudesse perguntar o que já tinha publicado, acrescentou:
– Inédito.
Escrevera um romance, mas ainda não o publicara. Lera num artigo que os livros precisam de um “tempo de gaveta”. Antes de publicar o livro, o autor deveria colocá-lo numa gaveta e esperar. Depois de um certo tempo, poderia ler o livro com distanciamento crítico e só então decidir se ele merecia ou não ser publicado. Depois de um certo tempo, afirmava o artigo, o livro seria outro.
– E foi o que você fez?
– Foi. Escrevi um romance curto, meio autobiográfico como a maioria dos primeiros romances. Achei que ele estava bom, pronto para ser editado. Mas hesitei. Talvez fosse melhor esperar para ler o livro mais tarde, com frieza, e só então decidir editá-lo. Ou não.
– E você botou o livro numa gaveta.
– Botei.
– Por quanto tempo?
– Quase dois anos.
– Dois anos? E durante todo esse tempo não teve vontade de pelo menos espiá-lo?
– Tive, mas resisti. Finalmente, abri a gaveta e tirei o manuscrito. Já estranhei o peso. Meu pequeno romance aumentara de tamanho. Comecei a ler e não reconheci o que tinha escrito. Em vez da minha cidade e das minhas experiências como adolescente, a história se passava na Rússia czarista. Procurei em vão pelas cenas da minha iniciação sexual com a babá do vizinho e não encontrei. Mas encontrei o Napoleão Bonaparte!
– O seu livro se transformara em...
– Guerra e Paz, pois é. Ou coisa parecida. Pensei que tivesse enlouquecido. Fechei a gaveta e passei mais dois anos sem abri-la. Com medo de que aquele meu delírio fosse verdade e eu estivesse mesmo louco. Até que um dia...
– Você abriu a gaveta de novo...
– Não, a gaveta se abriu sozinha. O tamanho do manuscrito forçara a gaveta a se abrir. Meu nome continuava na primeira folha, mas o resto do manuscrito, que daria uns seis volumes, era de reminiscências de um francês... Um romance meio autobiográfico, como o meu, mas a semelhança terminava aí.
– Proust?
– Proust. Botei este manuscrito numa gaveta maior. Esperei mais um ano. De vez em quando dava uma espiada, para ver no que meu pequeno romance estava se transformando desta vez. Um dia, criei coragem, abri a gaveta e peguei a primeira folha para ler. Começava assim: “No princípio Deus criou os céus e a Terra...”
– A Bíblia!
– E com minha assinatura. Fechei a gaveta imediatamente. Passei meses sem abri-la. E então, anteontem, decidi. Abri a gaveta, disposto a acabar com aquela brincadeira. Eu não era um louco. Aquilo não podia estar acontecendo. Abri a gaveta e encontrei...
– O quê?
– Meu romance. Meu pequeno romance, como eu o havia deixado tantos anos antes.
– E você vai finalmente publicá-lo?
– Não sei...
– Por quê?
– Acho que as gavetas estavam querendo me dizer alguma coisa...
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