Minha coluna na Gazeta do Sul de hoje
Como ser original sem ser original
por Cassionei Niches Petry
Pode um escritor se tornar um astro? Se ele for um mago ou tiver escrito antes uma HQ de sucesso, sim. O britânico Neil Gaiman não é um mago (apesar de escrever literatura de fantasia), mas criou, ou melhor, recriou o personagem Sandman, ser que governa o mundo dos sonhos. Agraphic novel, de 1989, fez tanto sucesso, que possibilitou a Gaiman escrever apenas obras literárias, seu grande objetivo antes de iniciar a carreira, e se tornou um dos escritores mais solicitados para autógrafos e fotos no mundo todo.
Nos anos 2000, Gaiman se dedicou a escrever contos e romances. Chama a atenção na sua obra a capacidade de ter originalidade sem ser totalmente original. Explico. Gaiman se utiliza bastante de personagens mitológicos, como os deuses nórdicos, por exemplo, mas os colocando nos dias atuais. Em Deuses americanos, o autor imagina como estariam as divindades que teriam vindo para a América com os imigrantes ou os escravos. Por não serem mais cultuados, eles seriam como pessoas comuns, tendo que trabalhar como os mortais, muitas vezes em atividades ilícitas, além de serem substituídos pelos deuses modernos. “Eu sou a caixa dos idiotas. Sou a TV. Eu sou o olho que vê tudo. Eu sou o tubo dos tolos... o pequeno altar na frente do qual a família se reúne pra adorar”, diz uma dessas novas divindades. No romance, aparece até a deusa da fertilidade Eostre, festejada durante o início da primavera no hemisfério norte, culto esse substituído pela Páscoa. Páscoa, em inglês, é “easter”. (Sim, mais uma festa que não era cristã, assim como o Natal, mas as pessoas juram que sempre foi).
Já na coletânea de contos Fumaça e espelhos (onde está o seu melhor conto, “O presente de casamento”, esta uma história totalmente original), Gaiman retoma lendas e histórias da literatura universal, como o Santo Graal, o Lobisomem ou os monstros do mestre das histórias de horror, H. P. Lovecraft. Seus contos mais recentes, reunidos emCoisas frágeis (editora Conrad, tradução de Micheli de Aguiar Vartuni, 208p.), seguem na mesma linha de inspiração ou, em muitos casos, na linha da encomenda. Infelizmente, a editora brasileira resolveu cortar boa parte das histórias, publicando apenas 9 das 31 da edição original.
O conto de abertura, “Um estudo em esmeralda”, escrito para uma antologia, tem com personagem Sherlock Holmes e com elementos das obras do já citado Lovecraft, assim como “Golias”, escrito por encomenda para um site de divulgação do filme Matrix, é inspirado na aventura de Neo e Morpheus. “O problema de Susan” retoma uma personagem de Crônicas de Nárnia, enquanto “A vez de outubro” é uma homenagem a Ray Bradbury.
“O monarca do vale”, que fecha a coletânea, é uma continuação do romanceDeuses americanos, mas pode ser apreciado independentemente disso. Também aparecem mais uma vez os personagens Alice e Smith, do conto “Lembranças e tesouros”, da mesma coletânea. Shadow, ou Sombra, antes perseguido pelos deuses modernos nos EUA, agora está na Escócia, onde participa de uma luta milenar, na verdade uma releitura da lenda de Beowulf.
Como se pode perceber, para melhor usufruir da obra de Neil Gaiman, talvez seja necessário um conhecimento bem amplo, principalmente sobre mitologia e literatura fantástica. Ou pode ser um pretexto para ampliar essa bagagem cultural, consultando livros ou a internet. Aliás, sem querer ser original, afirmo: leia Coisas frágeis, será uma viagem inesquecível. (Bah, foi horrível essa!)
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