Diário crônico XV – Simplificando Machado
Confesso
que fui um leitor de adaptações literárias durante muito tempo na minha
infância, porém, de literatura estrangeira. Meu contato com as “Viagens de Gulliver”,
de Jonathan Swift, por exemplo, foi com uma edição adaptada. Quando conheci a tradução normal, me
senti roubado porque a anterior trazia somente as duas primeiras aventuras do
Gulliver. Adaptar também era cortar.
Até
entendo que adaptem narrativas fora da nossa língua, mas não dentro dela.
Sempre aprendi que para ampliar o vocabulário preciso ler bastante. Entretanto,
se os livros lidos tiverem sempre os mesmos vocábulos utilizados no meu dia a
dia, meu conhecimento permanecerá limitado.
O
que tenta fazer a escritora que está “simplificando” a obra de Machado de Assis
para atingir um público, segundo ela, de gente mais humilde, é afirmar que
essas pessoas não têm capacidade para entender o grande escritor, não seriam
capazes de consultar um dicionário, não podem ou não têm condições de ampliar o
seu vocabulário. Se pensa que está prestando um grande serviço, se engana. Se
essas pessoas não conhecem nosso maior escritor não é pela linguagem, que nem é
tão complicada, mas sim porque elas têm outros interesses que não à leitura.
Não leem Machado, como também não leem nem mesmo Paulo Coelho, cuja escrita é
fácil.
Se
é para incentivá-las a se tornarem leitores, mostra-se a elas os escritores
contemporâneos. Se gostarem, fatalmente lerão mais e, na hora certa, chegarão a
Machado e outros clássicos. Simplificar a linguagem em favor da história apenas
é esquecer que a literatura é o trabalho com a palavra e a alta literatura é um
trabalho com a palavra de forma mais elaborada ainda. O escritor não escolhe
determinado vocábulo por acaso, não constrói a frase de forma sinuosa só para
mostrar suas habilidades sintáticas. Sabe-se lá se a palavra que a escritora
escolheu para “simplificar” determinada frase não foi a mesma que o Machado
substituiu por outra em busca de mais precisão no que queria expressar!
A
escritora, pasmem, já publicou mais de 200 livros infantojuvenis, segundo
reportagem do Estadão de hoje. Como
consegue escrever e publicar tanto? Não posso avaliar a qualidade de seus
livros, mas posso garantir que para escrever tantos ela deve ler muito pouco,
por isso não sabe que existem outros tipos de literatura que podem ser
oferecidos sem precisar empobrecer a do Machado de Assis.
O
caso lembra um conto do próprio Machado. “Um homem célebre” conta a história de
Pestana, compositor que gostaria de ser reconhecido por suas composições eruditas.
As pessoas, porém, teimavam em valorizar as polcas de sua autoria. A obra
realizada com mais apuro era preterida pela mais popular, feita de forma
apressada e de consumo rápido. O protagonista cedeu às pressões e compôs polcas
para o gosto do povo. Morreu triste, “bem com os homens e mal consigo mesmo.”
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